Com uma boa sopa, as dificuldades descem melhor
Ditado popular chinês
O homem tem três caminhos para agir sabiamente:
o primeiro, a meditação, é o mais nobre;
o segundo é a imitação, o caminho mais fácil;
o terceiro é a experiência - esse é o mais amargo.
Confúcio
– Rá: “Miau”, você é louca, Alice... louca! Rarará, mas foi demais, tenho que admitir: “Miau”. “Miau”!!! Meu maxilar está doendo de tanto rir.
– Podemos andar mais depressa? Estou ficando com fome...
Alice e Alex desciam as escadas do prédio, não as internas, mas aquelas outras, as de fora, contra incêndios, o corrimão quente e áspero da exposição ao sol. Há pouco menos de uma hora os dois chegaram àquele ali, naquele lugar; há pouco mais de cinquenta e cinco minutos subiram onze andares e chegariam suados e arfantes ao terraço; por pouco mais de vinte e sete se bronzearam totalmente nus e, por fim, há menos de oito agrediram e incapacitaram um homem, o zelador dali...
Fato é que agora, ambos desciam tranquilamente as escadas de ferro e entre os lances paravam e repunham uma peça de roupa. Alex, alguns degraus atrás de Alice, não parava de tagarelar, que para sorte dele a menina estava estranhamente excitada com o último acontecimento – a fome repentina, um sinal claro disto.
A cada andar Alice verificava as janelas de acesso, com o intuito de encontrar uma aberta para que pudessem passar e procurar alguma coisa para comer feito bicho vadio. O prédio era um desses populares, construídos durante algum governo também popular, numa dessas diversas tentativas de reurbanização e que encontram um arquiteto de boa vontade e criatividade, e que ainda lhe imprimisse entre os rabiscos e maquetes uma aura artística além de uma forma exótica, no caso, algo com um “7” deitado... e lá se vão trinta anos. Hoje, o prédio é ainda popular e na ausência de um desses bairros que reúnem imigrantes num mesmo chão, o velho Edifício Félix abrigava boa parte dos chineses, coreanos, japoneses, indonésios, cingaleses e outros orientais daquela metrópole, mas o nome latino dera lugar ao apelido: “Ásia”, Edifício Ásia. Onze andares, centenas e centenas de apartamentos feitas gaiolas.
– Merda! Estão todas fechadas...
– Ué, quebra uma... – Alex sugeriu com um tom de desdém para Alice que por sua vez olhou para ele e para a janela como quem diz:
– Tem razão.
Enrolou a camisa de Alex no cotovelo e com ela quebrou uma das janelas, o barulho feito pelo vidro não pareceu incomodar ninguém a ponto de irem lá ver o que ou quem era. Atravessaram com cuidado para o lado de dentro, o corredor interno do Ásia era frio escuro estreito, escondido por detrás das portas contra incêndio, subindo e descendo, em circulares degraus pequenos; havia muito barulho vindo do outro lado, dos outros corredores, aqueles em que ficavam os apartamentos. Uma porta vermelha com um “3” branco manchado nela anunciavam o andar em que estavam: abriram. Alice e Alex se surpreenderam: estavam em outro mundo, apinhando de gente, bem diferente do que acabaram de deixar, sons vários: choro grito vozerio. Cores fortes: vermelhos, laranjas, verdes. Uma gente amarela, feia e diferente do que os dois queriam ver, era assim que pensavam. Automaticamente Alice sentiu a sua cabeça rodopiar – não gostava de lugares cheios e, ainda mais, feios.
Entraram no primeiro apartamento que viram com a porta aberta e um mínimo de silêncio aparente.
Parecia vazio, era muito colorido, muito vermelho, dourado, quinquilharias ali e aqui, com numa loja de penhores ou antiquários do centro da cidade; um cenário caótico para desgosto dos dois, um cheiro adocicado no ar e um cântico oriental saindo de algum buraco animava ainda mais aquele cenário de filme, mas não se poderia afirmar que era do apartamento em que estavam, pois algo dizia que se entrassem em qualquer outro a diferença só estaria nos números da porta. Alice repetiu que estava como fome, Alex concordou com ela e seus olhos passaram a buscar a cozinha, que escondida detrás de uma cortinazinha de miçangas coloridas, não disfarçava as panelas ao fogo. Seguiram para lá. Uma panela levantava fervura, um cheiro indistinto para ambos saia em meio a fumaça, não sabiam o que era, mas parecia gostoso; Alice e Alex tomariam aquela nova sopa. Enquanto Alice fora a sala em busca de pratos, Alex revirava as gavetas buscando talheres que pudessem usar.
– Pauzinhos uma ova, eu quero é uma boa colher! – Alex encontrou uma concha e se contentou com ela.
Numa Crist aleira na sala, Alice achou duas tigelas de porcelana muito bem decoradas em laca vermelha e preta, no fundo desenhos de casais asiáticos tinham relações sexuais com sorrisos no rosto – aquela deveria ser a louça das vistas. Enquanto ria sentiu no canto do seu olho um vulto passar pela porta. Seus olhares se cruzaram um só instante, o necessário para as duas perceberem que agiriam contrárias aos pensamentos uma da outra. A senhora chinesa tentou correr em direção à porta por onde entrara, mas Alice fora mais rápida e se deteve diante dela, largando as belas tigelas pelo chão. Alex, ainda com a concha de sopa na mão olhou a cena apenas; não se preocupando quase; veio à cabeça o pensamento: “Se essa velha souber kung-fu, a Alice tá fodida... essa sopa tá com uma cara ótima...”.
A senhora chinesa quebrou o silêncio e o estranhamento resmungando alguma coisa na direção de Alice com o dedo em riste; gesticulava, apontava, levava as mãos à cabeça e apontava a saída, era uma voz fina e irritante, Alice, calma, disse:
– Fala a minha língua? Nós só queremos um pouco da sua sopa...
A senhora chinesa não dava ouvidos ou entendia e só repetia:
–你是誰? 這裡不歡迎你!滾出去! 滾出去! 滾出去! 滾出去...
– O quê? O quê, você está dizendo, velha idiota? – Alice falou e repetiu achando graça da senhora: – Fala a minha língua? Nós só queremos um pouco da sua sopa... Não vamos fazer nenhum mal, deixa de ser boba... só queremos comer.
A senhora chinesa estava transtornada, não parava de falar, queria que os dois fossem embora, mas não ousou se mover, ficou ali, na frente de Alice. Aparentava uns setenta anos ou mais – era difícil determinar: ereta, miúda, a pele feito papel amassado algumas vezes e desdobrado um só; os olhos, riscos no rosto poroso, o cabelo lisíssimo preso num coque preso por um pente de osso, de um tom cinza-prateado e um hálito... Alice sentia dali. Não era bom.
– 您在這裡不歡迎你沒有權利留在這裡! 走開, 我會叫警察! 走開! 走開!
– Ihhh, cansei, velha chata: vem cá...
Alice pegou a velha pelos ombros quase como uma boneca e praticamente a jogou no sofá, a velha resmungou e pela primeira vez partiu em direção à garota: Alice não fez mais que empurrá-la de novo e pô-la sentada. E a senhora, mais alto e veemente, praguejava em sua língua e batia os pés miúdos no chão feito criança pirracenta numa linguagem universal de insatisfação. De fato, ela parecia uma criança com aquela altura e aquela voz, como que nascida ao contrário, tal qual o conto do Fitzgerald. Mas não, não era; era apenas uma velha mesmo que já vivera demais e muito, além da falsa idade que aparentava.
–走開, 走開, 我的家,我的家! 你不能留在我的家! 薩伊姆, 滾出去! 它是被禁止! 我沒有邀請你, 你的攻擊... 侵略者! 攻擊者已經在我的家裡! 救命啊! 救命啊! 救命啊!
– Deus!!!, ela não para com essa ladainha irritante...
– Ela quer que a gente vá embora... – comentou Alex, pegando uma das tigelas caídas no chão.
– Bem, isso é evidente.
– Não..., ssrup... Ela está dizendo isso literalmente: “走開”, “Vão embora.” Ssssrupp... quer sopinha?
Alice se surpreendeu (até a velha pareceu silenciar um pouco), Alex sabia chinês?!
– Você fala chinês?
– Correção: mandarim, falo mandarim e só um pouco...
– E qual a diferença?
– Dizer que eu falo chinês dá a entender que eu domino todas as variedades da língua falada pelos chineses. Eu só sei uma, a principal, o dialeto falado pela capital e pela maioria: o mandarim, também conhecido co --
– Como você sabe mandarim?! – Interrompeu Alice, estupefata, o monólogo de Alex.
– Bem, eu estava lendo uma revista do Wolverine antiga, sabe: um gibi... e tinha um anúncio numa das páginas de um curso.
– ...?
– Um daqueles cursos por correspondência... Instituto Universal Brasileiro... não “faaalo” mandarim, “falo”..., dá pra me virar. Sabia que o mandarim é a língua mais falada do mundo?
Alice não sabia o que dizer, estava atônita, não sabia o que pensar, Alex dominava uma das línguas mais exóticas do mundo e falava disso como falava de classificados no jornal. Alex tinha disso, um certo desleixo por aspectos do que prezava a sociedade e cultivava outros, que guardava para si – e não fazia questão de dividi-los.
– Por que não me disse que falava mandarim, seu idiota? E põe um pouco dessa sopa ai pra mim!!
– Srrrrup... Ora, você nunca perguntou... além do mais, pra quê? O que você iria fazer como essa informação?
– Por exemplo, traduzir o que essa velha maluca tá dizendo???
– Ahhh, é verdade...
–走開, 否則會後悔的... 如果現在, 你不會做任何事情.
– O que ela disse?
– De novo, está pedindo pra gente ir embora e que se formos agora não nos fará nada. – [Senhora, peço desculpas por mim e pela minha amiga. Somos dois desesperados e só entramos aqui, pois sentimos o cheiro dessa sopa maravilhosa e decidimos entrar e prová-la. Mil perdões, já estamos de saída.]*
A velha senhora chinesa silenciou. Olhou para Alex como que escaneasse a sua alma no gesto: não detectou nada. Olhou então para Alice, não gostou do viu, voltou-se para o rapaz:
– [Por que anda por aí como essa mulher? Ela não é boa para você! Não é pessoa de bem! Eu quero que ela vá embora. E já!]
– Ihhh, já conheço esse “離開” ela quer que a gente saia daqui, não é?
– É.
– [Posso me levantar?]
– Ela pode se levantar?
– Sim claro, ela não é uma prisioneira.
– [Vou dar comida certa pra vocês, não é assim que se toma essa sopa. Precisa de mais coisas...]
A velha senhora saiu do sofá tomou a tigela das mãos de Alex e nem sequer deixou que Alice provasse. Foi para cozinha, abriu uma gaveta e o brilho da lâmina do pequeno cutelo refletiu na íris verde de Alice – ela achou aquilo lindo. Ela demonstrava uma habilidade incrível com ela ao cozinhar, cantava e se movimentava leve pelo ambiente, tirou de vários lugares folhas, tubérculos e temperos de sei lá onde, os cheiros que saiam das panelas aguçavam a curiosidade e ainda mais a fome de Alice; Alex, que provara a sopa não sabia que aquela gostosura ainda podia melhorar Alice o olhava de rabo de olho, ainda surpresa com a sua desenvoltura linguística.
– O que foi? Por que não para de me olhar?
– Não é nada... Você aprendeu mesmo mandarim sozinho?
– Hum-hum... acho que tenho facilidades para línguas, aconteceu o mesmo com sueco e com o húngaro, no início não achei que conseguiria, mas com algumas poucas aulas eu – pum – já estava dominando bastante a coisa toda e quando vi, já falava... sei lá, acho que é uma maldição...
– Cala a boca, Alex, você é um idiota.
Alice se irritou e saiu de perto do rapaz, foi até a janela e afastou uma pesada cortina – Alex ligou a tevê, um china pulava atirando com duas pistolas meio de lado em suas mãos, enquanto pombos brancos voavam pelo galpão da cena, tudo isso em câmera lenta. – pelo vidro, Alice via a vida lá fora, e o silêncio devastador de matar: “Um desencaixo”, era o que ela pensava sobre tudo ali. Um fastio encheu o peito da menina, viu alguns carros de polícia virarem a esquina de longe, as sirenes chegando...
– [Aqui está, uma verdadeira refeição e...] – disse a velha senhora, mas interrompeu a sua fala ao ver a tevê ligada.
– [Desculpe] – disse Alex, desligando a tevê ao notar o desconforto da velha.
– [Não se deve comer assistindo essa coisa, meu rapaz. Não é bom. Venha, sente-se aqui e venha comer, você é muito magro. Você também, menininha malcriada. Ossuda esquálida, venha sente-se... coma, coma, pegue um pedação de pão. Com uma boa sopa, as dificuldades descem melhor.]
O silêncio que fazia à mesa era inverso ao que vinha dos corredores, Alice e Alex comiam feito cães famélicos e a velha senhora observava com curiosidade científica aqueles dois, ela quase não comeu, preferiu acender um cigarro muito muito estranho, ficava soltando uma fumaça esverdeada para o teto, quase que aguardando os dois bichos à frente dela. A sopa era deliciosa, Alice e Alex não saberiam definir o seu gosto depois, sequer lembrar-se de algum dos seus ingredientes ou simplesmente comê-la.
Alex foi o primeiro a desabar: caiu com a cara na tigela de sopa, Alice não pareceu notar de imediato, seus lábios estranhamente dormentes, a visão embaçada, piscava como luta para manter os olhos abertos, ainda, antes de também desmaiar, ouviu aquelas sirenes bem mais perto e a velha senhora chinesa dizer num português exemplar:
– “Era uma vez uma menina chamada Maria e seu irmão chamado João, que moravam em uma casa perto da floresta...”
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» No próximo episódio, Alice e Alex despertam de um sono de sonhos intranquilos para a conclusão de “A Invasão Chinesa”.
* Traduzido do mandarim.