30 de jun. de 2010

A Balada Imprudente de Alice e Alex: Gata em teto de zinco quente - ep.01

Por Mauro Siqueira


.
“Comia arroz, fejão, batata doce e carne moída, quando começou a matéria.
Os tinham machucado o moço de um prédio.
E o cara do jornal tava na porta do hospital falando com o médico dele.
Eu não vi porque era rádio.”
Notas do Caderno Azul
.

A altura lhes dizia: não estamos baixos. Até impressiona a força do vento ali em cima, mas não que bastasse para aplacar o calor do alto daquele prédio; lá embaixo formigas de diversas espécies em trajes e andrajos, movimentando-se dentro de alguma lógica que Alice entenderia a algum tempo, agora apenas desprezava e por detrás dos óculos exultava um ar de vitória – aquela que somente uns poucos descobrem e que se confunde com liberdade: a verdade exulta. Do alto ela ria dos insetos lá debaixo; quem quer que olhasse para as outras direções veria o calor saliente dos edifícios como ondas revoltas, o mar de prédios estendendo-se até se deformarem e se esconderem no horizonte, as variadas alturas, “conceitos”, funções, formando um relevo feito concreto-metal-vidroreluzente-suor&sangue, erguido por muitos sem-nome-cara&rosto... particularmente, prédios orgânicos quase personagens vivas de um cenário... um teto de nuvens esparsas, e contrastando como o imenso horizonte, a poeira e a poluição, em lenta suspensão, como escuma-do-mar, cardumes variados de antenas de retransmissão, micro-ondas, parabólicas, para-raios e exaustores eólicos cintilantes e Alice hipnotizada, o som ali era diferente: um apito, um ritmo, uma sinfonia aguda que só ela ouvia, um estranho quase desconhecido estado de paz.
.
Alice e Alex não estavam baixos. Não fugiam de ninguém, não sabiam ao certo como chegaram ali, no alto do prédio, apenas resolveram ir para lá. Estendidos numa lona velha tomavam sol. Alice e Alex nus, vestidos apenas com os seus óculos wayfarer, um pouco fora de moda há 15 anos, roubados, à revelia da grande cadeia de lojas de departamentos a onze andares abaixo. Vendo-os ali, imaginar-se-ia tratarem serem dois modelos de catálogo, um catálogo fictício, surreal mesmo, dada a aparência de ambos, Alice e Alex: modelos naturalmente inapropriados do stabilshment de qualquer mercadoria, Alice e Alex... Tomando sol. Olhavam o céu. O sol estava lá para eles, ambos brilhando, o suor se misturando com... óleo. Queriam provar uma tese de Alice, descobrir qual dos dois contrairia primeiro um câncer de pele, para tal besuntaram o corpo em óleo. Alex passou o de soja e Alice o de girassol e foram ficando ali... mas não chegariam a saber quais dos dois teriam a resposta primeiro: o estado de natural inquietação de Alice fez com que cada um não permanecesse dez minutos sobre a lona.
.
– Tá uma merda isso...
– O quê?
– Isso! Isso tudo... não tô mais afim de ficar por aqui, feito frango de padaria.
– Mas a ideia foi sua!
– fora que tenha sido minha: tá uma merda isso... Vamos fazer outra coisa, vamos comer? Só não quero mais ficar aqui.
– E ele? – a voz de Alex, por um instante, pareceu fraquejar – O que vamos fazer com ele?
.
Perto deles, um homem, perto da porta de acesso ao terraço em que estavam - ele parecia dormir, mas na verdade estava desmaiado, em choque. A razão? Talvez a forte pancada recebida com uma barra de ferro na cabeça. Abriu um vergão, o sangue jorrou em Alice, Alex quem bateu, surpreendendo o homem, vindo por detrás dele, assim que este passou da porta e foi em direção à Alice, interpelando da presença da garota no teto: eles não poderiam estar ali, no telhado do edifício, como gatos vadios. Ruãn, esse era o nome, era um dos zeladores do prédio, trocara de turno àquela tarde com um amigo, à noite era festa de seu noivado.
.
– Deixa ele aí... Ele não chegou sozinho? Que volte.
– Mas Alice...
.
Não terminou a frase, a garota fulminava o parceiro, os olhos de Alice, algum felino qualquer, Alice: toda ela felina, andar, movimentos e gestos, um gato perigoso que não tinha medo algum, principalmente de esgarçar as unhas na pele dos outros. E Alex simplesmente a seguia, excitava-se na presença de Alice e vê-la daquela forma, agindo daquela maneira, Alice naquele estado, uma sensação em que os dois comungavam juntos, uma coisa diferente que ele não sabia dar nomes. E era sempre isso que perseguiam.
.
– Então, vamos embora?
.
Disse ela de cima da amurada, desafiando o equilíbrio, abaixo dela 11 andares. A voz enfastiada com aquilo tudo, como os gatos sem interesse pelo brinquedo... Pulou da amurada. Caiu agachada feito bicho sobre o zinco, não pareceu se importar com o calor, ficou um pouquinho assim... restando apenas gesto para transformação completa. Engatinhou até o homem caído, ela o virou, tinha os olhos vidrados, meio que úmido, perdido num vazio, respirava com dificuldade, o peito subindo e descendo muito, muito rápido, afogando-se no seco... peixe fora d’água, a vida se esvaindo... “Miau”.
.

.
***

» No próximo episódio, Alice e Alex fazem provisões para “A Invasão Chinesa”.