Por Sinvaldo Júnior
Ricardo Piglia é considerado um dos maiores
escritores argentinos, e o seu romance Respiração artificial é um dos mais
estudados de toda a sua obra. Em uma pesquisa feita entre 50 escritores
argentinos, essa obra ficou entre os dez melhores romances da história da
literatura daquele país.
Mas por que os argentinos gostam tanto desse
livro? A partir de apenas uma leitura, para nós, brasileiros, que pouco
conhecemos dos nossos vizinhos, é difícil entender, mas vamos tentar analisá-lo.
Respiração artificial, de Ricardo Piglia, começa assim: um dos personagens-narradores (são
vários, no decorrer do enredo), Emílio Renzi, decide contar uma história sobre
a única “tragédia” de sua família: o seu tio, Marcelo Maggi (o Professor),
irmão de sua mãe, abandona a esposa (Esperancita) e foge com Coca, roubando o
dinheiro daquela. Esse é o mote para esse romance que discute,
fundamentalmente, a história da Argentina, da literatura e, mais especificamente,
da literatura argentina.
A parte histórica (ou historiográfica) do enredo da
obra surge por meio da troca de cartas entre Marcelo Maggi (tio) e Emílio Renzi
(sobrinho). Além da “tragédia” da família, sobre a qual pairam muitas dúvidas,
o assunto preferido deles é Enrique Ossorio, bisavô de Esperancita, um homem
controverso, por alguns considerado um traidor, por outros e por si mesmo, um
herói. Além da troca de cartas, o enredo se constrói também a partir de
relatos, datados de meados do século XIX, do próprio Enrique Ossorio. Fica a
dúvida: afinal, esses relatos são destinados a quem?
Entra em cena, então, dom Luciano Ossorio, um homem
quase centenário, pai de Esperancita e neto de Enrique. E ele, Luciano, com sua
memória implacável, ajuda a complementar a história de sua família – o seu pai
morrera num duelo por honra a um pai (Enrique Ossorio) que nem mesmo chegara a
conhecer, porque o avô havia se matado antes mesmo de o filho conhecê-lo. Essas
são as histórias e os principais personagens da primeira parte do romance.
Há, por parte do autor (por meio dos seus
narradores), o objetivo de recontar (construir?) momentos históricos
aparentemente desimportantes da Argentina de forma a acentuar a relevância dos
seus anti-heróis, dos seus fracassos, das traições. Nem só de heróis é
construída a história de um povo, de um país – parece querer nos dizer, às
vezes, a obra, sobretudo em sua primeira parte. A par desse teor histórico e
ora policial do romance, eis que se inicia a segunda parte, na qual a
literatura – tanto a mundial quanto a argentina – se torna a protagonista, para
o deleite dos especialistas.
Na segunda parte (Descartes), após um
breve sumiço, voltam à narrativa os personagens
Emílio Renzi e Marcelo Maggi (o Professor). E é na busca por mais conhecimentos
e documentos do projeto do tio, que Renzi conhece o filósofo Vladmir Tardewsi,
polonês radicado na Argentina, sujeito sem raiz, pessoa anacrônica, último
sobrevivente de uma estirpe em dissolução e o próximo narrador. É aí, a partir
do diálogo e das reflexões de Renzi e Tardewski, com a entrada, às vezes, de
outros personagens, que a literatura se torna a grande protagonista de Respiração artificial.
Em vários momentos, o romance assemelha-se a um
ensaio que discorre sobre: a literatura argentina; o europeísmo na literatura
argentina; o texto fundador da literatura argentina (Facundo,
de Sarmiento, cujo início é uma frase escrita em francês que é, inclusive, uma
citação falsa, equivocada); Borges e Arlt; a autonomia da literatura; o estilo;
os escritores argentinos como Lugones, Sarmiento, Hernández etc. Enfim, em
alguns momentos, é praticamente um romance argentino para deleite dos bem
pensantes (acadêmicos) argentinos.
Não é de se estranhar, portanto, o motivo de Piglia
ser tão celebrado nas academias, inclusive no Brasil. Piglia, em vários
momentos de sua literatura, abusa das intertextualidades, das referências, das
citações e do uso de escritores como personagens – seguidor de outro escritor
celebrado nas academias (Borges?). As faculdades de Letras e Literatura, em geral
muito fechadas em si mesmas, celebram esse tipo de literatura, como a do
Piglia, que discorre sobre a literatura que discorre sobre a literatura e,
assim, ad infinitum. Uma prática errada? Não, mas perigosa.
“[...] em vez de ser respeitoso fui me arrastando cada vez mais para a franqueza, delito imperdoável entre acadêmicos. Comecei a expressar com clareza cada vez maior o que realmente pensava. Eu, o polonês, bem tratado por aqueles cavalheiros, deixei-me levar pela crua expressão dos meus próprios pensamentos.” (p. 164).
De fato, maldito daquele que possui opinião própria e não se rende às teorias e aos autores sagrados desse ambiente, pois estará cometendo um pecado mortal. Afinal, o mais comum é a seguinte prática:
“[...] tudo o mais que circulava em meu curriculum vitae não passava de comentários ou paráfrases de ideias de outros, exercícios melancólicos de pseudoerudição filosófica (...) editados em revistas especializadas.” (p. 171).
São palavras do personagem ex-discípulo de Wittgenstein, o personagem
Tardewski, jovem promissor que, no entanto, na velhice não passava de um fracassado
(professor particular de Filosofia para alunos do ginásio), segundo sua própria
teoria e consciência. Sim, ele elabora uma complexa teoria sobre o fracasso e
confessa que, desde sempre, buscava esse modo de vida, a do fracasso, ou
melhor, a da renúncia, a do desprendimento. Embora “fracassado”,
é ele o responsável pelo melhor do romance: sua vida, seus relatos, sua
situação de radicado na Argentina por conta da invasão nazista em seu país, a
Polônia, e sua descoberta.
E nessa descoberta (ou na tentativa de
elucidá-la) entram em cena Kafka e Hitler, não como personagens atuantes, mas
secundários, sobre os quais Tardewski discorre. O que há em comum entre o
escritor tcheco e o maior vilão da história da humanidade? Essa é a pergunta
retórica usada pelo polonês a todo o momento. Houve algum tipo de relação entre
ambos? Em algum dia já se encontraram, conversaram, trocaram ideias? Afinal, o
que é essa coisa tão importante descoberta por Tardewski?
De acordo com ele, Hitler, “o exaltado defensor do
militarismo prussiano, o sinistro construtor de uma abominável sociedade
militarizada, fora um desertor. Delito máximo a que um alemão podia aspirar,
segundo as leis nazistas” (p. 191). Porém, essa não é a coisa descoberta
por Tardewski, para o qual, inclusive, o livro Minha luta, do
ditador, era a realização da filosofia burguesa, a razão burguesa elevada ao
seu limite mais extremo e coerente. Dentre essas e outras reflexões, o polonês
enreda não só seu interlocutor (Emílio Renzi), mas também os próprios leitores,
uma vez que demora a apresentar sua tão fadada descoberta.
Até o real motivo que fizera Renzi estar ali naquela província, a saber, o encontro com o seu tio Maggi (o Professor) a fim de saber mais acerca de Enrique Ossorio (homem de confiança do presidente Rosas em meados do século XIX), fica em segundo plano quando Tardewski, esse personagem tão convincente, abre a boca para falar. E fala, fala, fala. E ao falar esperam, ele e Renzi, a chegada de Maggi. Por onde andará? É uma pergunta para a qual Renzi, seu sobrinho, não obterá respostas. Nem Renzi, nem os leitores.
Ao final do romance, após a explanação enfim da grande descoberta de
Tardewski, confirma-se justamente o desaparecimento do Professor, uma vez que –
pelo menos na narrativa – ele não aparece, senão como uma sombra, mas uma
sombra marcante, especialmente para Renzi.
O professor e historiador Maggi não vai ao
encontro, mas sob os cuidados do seu sobrinho deixa muitos documentos
históricos e muitas cartas, entre as quais o bilhete de suicídio de Enrique
Ossorio, o vilão, o traidor, o herói.
Sinvaldo Júnior
é pesquisador acadêmico e revisor de textos (Textifique
Soluções em Textos). Possui graduação em
Letras/Português, mestrado em Administração e doutorado em Estudos Literários.
Atualmente cursa pós-doutorado, com pesquisa comparada entre literatura e
cinema. Publicou diversas resenhas, artigos de opinião e artigos acadêmicos
sobre leitura e literatura, com foco em obras e autores brasileiros. É pesquisador/admirador
de Carlos
Drummond de Andrade, Charles Chaplin e
Campos de Carvalho. Mora em Uberlândia-MG. É co-autor do romance jovem adulto Crisântemo.