Por Allyne Fiorentino
Claudia Masin é escritora e psicanalista. Nasceu em
Resistencia, Argentina, em 1972. Foi docente da disciplina de Poesia no curso
de Artes de la Escritura na Universidade Nacional de las Artes. Atualmente
coordena oficinas de escrita.
Crie corvos
As crianças, como os gatos, conseguimos ver na escuridão
sentinelas que sabem que não podem se ofuscar
com o próprio sono, passamos as horas
tecendo uma teia finíssima ao redor
do nosso medo. Depois, muitos anos depois,
você costumava me dizer, chega o esquecimento e podemos dormir
sem sobressaltos. Eu ainda não esqueci.
A cada noite, permutamos histórias
como joias. Esta fica bonita em você,
esta combina com sua pele, com seus olhos:
Havia uma menina que era tão pequena
que cabia na palma de uma mão.
Se eu fosse essa menina — penso — escolheria
viver na sua mão. Poderia fechá-la
e me deixar sem nada, mas toda boa história
precisa de uma tragédia, uma mudança inesperada.
Não quero que chegue ao fim
o seu relato, que a noite acabe. Não sei o que existe
do outro lado. A vida é uma imagem
que vai se desfocando, perdendo os contornos
dia após dia. Crescer é a passagem da imagem nítida
à distorção. Quero continuar sendo menina
para conservar a vista.
O silêncio
Quando criança, respirávamos como plantas pequenas,
e o ar mais rarefeito, para nós, era suficiente. Vivíamos
como as pedras: transportados por correntes
ou deslizamentos – forças exteriores
sobre as quais não temos poder nem consciência – rumo a lugares novos.
Quais perigos e terrores teremos conhecido, então,
quando amadas mãos nos colocavam em movimento,
rumo a que rios furiosos, a que encostas
onde íamos nos perder, teríamos sido arremessados,
em que avalanches teria ficado parte da nossa matéria?
E se tudo o que quiséssemos dizer já estivesse escrito
nessa pedra que outros moldaram como o vento?
O coração é enganador acima de tudo
Não continue, por favor, falando
da fealdade do mundo, não continue me mostrando
no seu espelho impecável o que não deve ser mostrado.
Escrevo, agora, com mais de trinta anos,
como se as palavras fossem o alento que me faltou quando menina
para embaçar o vidro demasiadamente limpo dos teus olhos.
Digo que não se pode olhar de tal maneira que tudo o que existe
seja duplicado no seu olhar: há coisas que se podem ver
uma única vez, ou nenhuma, correndo o risco de que a própria vida
saia de sua órbita como um planeta
enlouquecido, e caia fora do sistema que o mantém ali,
sereno e estável, pendurado no céu. Escrevo acima, dentro,
da sua voz que não é voz, é algo visto
que tento cegar, apagar, para que o que está despido
e quebrado seja vestido e recomposto, assim como se fecham
os olhos de um morto, porque como
suportar que nos olhe de tal maneira, isto é,
que não esteja mais a vida sustentando-lhe a luz com que nos vê.
Allyne Fiorentino - Natural de Minas Gerais, residente em São Paulo, capital. É profissional das Letras e da Educação, mestra em Estudos Literários na linha de Teorias e Crítica da Poesia, Poesia Simbolista. Apaixonada por Literatura Feminina, Filosofia e excentricidades. Low profile do mundo literário. Está também em Crônica do Dia. Instagram: @allyne.fiorentino.