10 de out. de 2025

Um timaço argentino: Maradona, Borges e Cortázar #valeapenalerdenovo

Por Daniel Lopes Guaccaluz

Maradona era canhoto (e que canhoto!), mas Pelé, nas pernas, era ambidestro. Maradona era um tremendo driblador, Pelé também. Aqui empatamos. Pelé era um exímio cabeceador, Maradona até quando fez gol de cabeça, fez gol de mão, La mano de dios, segundo ele. Por enquanto, o placar está em três a um, certo? 

Em se tratando da qualidade do passe, acredito que ambos empatam novamente, o que deixa o placar em quatro a dois. Vitória de Pelé e do nosso futebol. Mesmo assim, Maradona ainda tem um diferencial, talvez um golzinho a mais a favor dele: o argentino ganhou uma Copa, sozinho, em 1986, coisa que Pelé não chegou a fazer. Garrincha talvez tenha conseguido tal feito em 1962, mas Garrincha é outra história.

No futebol não dá pra eles, entretanto não é necessariamente de futebol e nem desse tipo de time que quero tratar aqui. O objetivo deste artigo, ou resenha, ou sei lá o quê, é levantar a bola para o timaço da literatura argentina do século XX.

São tantos nomes que é até difícil se ater a qualquer um deles em especial. Fica difícil qualquer tipo de escolha, ou eleição, num time que tem jogadores, digo, escritores, do porte de Roberto Arlt, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sabato, Julio Cortázar e Jorge Luis Borges.

Portanto, não me vou delongar além da paciência do leitor, nem vou além da minha própria paciência. Só quero levantar a bola, quem quiser, que corra atrás dos livros dos caras e da crítica especializada. Deixarei aqui, portanto, minhas impressões sobre dois deles: Borges e Cortázar.

  

 JORGE LUIS BORGES – Pierre Menard, o escritor do Quixote 

Comecemos por Borges, que é um escritor de textos curtos, mas amplos de significado. Pequenas pérolas, eu diria, e qualquer um pode dizer, ainda que seja piegas a comparação entre textos e pérolas. Atenhamo-nos, pois, a uma destas pérolas, melhor, destes contos, o completo: Pierre Menard, El escriptor del Quijote.

Resumidamente, o texto conta a história de um escritor que acaba de morrer, cuja maior obra é ter conseguido reescrever dois capítulos do Dom Quixote. Visto assim, parece simples, mas esta narrativa dá muito pano para a manga. Percebam que Pierre, não copia o texto do Cervantes, ele tenta tocar, outra vez, o mesmo mistério, alguns séculos depois. É um trabalho quase impossível e é totalmente quixotesco... inútil, afinal de contas o livro já existia. Mas aí entramos em contato também com Platão e seu mundo das ideias.

Talvez o Quixote perfeito, se é que pode haver um melhor, esteja lá, repousando em algum lugar, em estado de dicionário, basta alguém que saiba tocar para alcançá-lo. Tal discussão é extremamente pertinente num tempo em que a inspiração vem sendo, constantemente, massacrada e o trabalho do artista vem sendo comparado com qualquer outro trabalho, que não exija coisa alguma, além do esforço.

Sou de posição contrária, acredito que o artista é um predestinado, quase que um xamã

Sei que a Arte também é feita de um trabalho árduo e racional. O problema é que a maioria das pessoas, hoje, acredita que só o trabalho árduo e racional construa a Arte, e não é isso. A Arte é feita de uma mistura de racional e irracional. De consciente e inconsciente. De Apolo e Dionísio. Portanto, meu caro cabotino, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Beleza, chega de Borges.


  JULIO CORTÁZAR – As babas do diabo 

Com isto, passemos a Cortázar. Mais precisamente para um direto de direita chamado Las babas del diablo. Certa vez Julio Cortázar, ele mesmo, assim como eu, um grande admirador de boxe, disse que, enquanto o romance era uma luta ganha por pontos, o conto devia ser como uma luta ganha por nocaute. Sejamos, pois, nocauteados por Las babas del diablo.

Toda vez que tenciono relê-lo, vou preparando o terreno alguns dias antes. Começo ouvindo sons tenebrosos do Black Sabbath e sigo deixando minha alma perambular pelos terrenos de água parada dos Doors. Sempre que possível, corro, como outro passo de um mesmo ritual, atrás do Blow up do Antonioni, filme que, a meu ver e no ver de muita gente, tem muito em comum com o conto. Só depois de tudo isso, encaro a narrativa. Está ansioso? Calma, leitor, que a luta já vai começar. Soltem os escorpiões.

Las babas del diablo começa e termina como uma aula de literatura. A princípio, o narrador trata da impossibilidade de se narrar algo. Questiona a dificuldade de escolher entre uma narrativa em primeira, segunda, ou terceira pessoa, tanto do singular, quanto do plural.

  “Si se pudiera decir: yo vieron subir la luna, o: nos me duele el fondo de los ojos, y sobre todo así: tu la mujer rubia eran las nubes que siguen corriendo delante de mis tus sus nuestros vuestros rostros. Qué diablos.” 

Por fim, o narrador acaba optando por uma mescla entre primeira e terceira pessoa. Resolvida a questão do narrador, passemos à mistura produzida entre tempo e espaço na narrativa.

Prestem atenção no período: “Uno baja cinco pisos y ya está em el domingo”. O cara desce de seu apartamento até o térreo e já está em outro dia! É ou não é terrível, e belo?

A maneira como o enredo é construído, é outro aspecto impressionante do conto. Roberto Michel, um tradutor e fotógrafo, num dia qualquer, tirou foto de um casal numa praça erma de Paris. A mulher que compõe o casal é mais velha que o rapaz, ele deve ter no máximo quinze anos. Todavia, há também alguém mais na cena, um homem, cuja face está coberta de um pó estranho que lhe esconde as feições. Este ser misterioso também aguarda o desenlace da história, dentro de um carro negro. 

Não conto mais nada... vale a pena ir atrás.

A professora Heloísa da Costa Milton, da UNESP de Assis, certa vez me disse que é imperdoável o uso de alguns adjetivos num texto crítico. Bem... não sou crítico: Cortázar é FODA!

Outro lance, que não poderíamos deixar à margem, é a maneira como a trama é construída: aos poucos, como se o narrador estivesse estudando o leitor, da mesma forma que um boxeador estuda o adversário, dentro do quadrilátero. Parece-me que Roberto Michel vai gingando com as pernas da palavra, soltando apenas alguns golpes curtos. Sem pressa, o texto vai minando a defesa do leitor e, no final, vem a pancada e o nocaute.

Por enquanto é só. Todos os idiomas repousam nas bibliotecas. E o dicionário é o livro definitivo de qualquer língua. Até mais!

  

Daniel Lopes Guaccaluz é escritor, jardineiro e professor. Gosta de arte, planta, bicho e gente. Seus autores preferidos são Jack Kerouac, Louis Ferdinand Céline, Dostoiévski e Guimarães Rosa. Não ignora o lado sombrio do mundo, mas ainda crê na força da amizade, da gentileza e do amor. Pai de Sofia e João Gabriel. Publicou os livros Pianista BoxeadorFrutaA delicadeza dos hipopótamosNo céu com diamantes e Ménage à trois. Foi um dos organizadores da coletânea de contos Do outro lado da notícia. Eterno aprendiz.