Por Gustavo Coelho
Muitas obras nos entretêm, poucas nos transformam. Clannad, em suas duas temporadas, pertence inquestionavelmente ao segundo grupo. O que começa como uma aparente comédia romântica em um cenário escolar, desdobra-se em um dos mais comoventes e realistas retratos da jornada humana já criados na animação japonesa. É uma história que não teme explorar os picos de alegria e os abismos do desespero que compõem a vida, deixando um legado que lhe acompanha muito depois dos créditos finais.
Esta aclamada série de anime e mangá se originou de uma visual novel japonesa (lançado, originalmente para PCs), criada em abril de 2004 por Jun Maeda, com contribuições de Yūichi Suzumoto, Kai e Tōya Okano. Uma obra que transcende o simples romance escolar para entregar uma profunda e, por vezes, dolorosa exploração dos laços humanos, da superação e do verdadeiro significado de família.
Sinopse (sem spoilers)
A história é contada através dos olhos de Tomoya Okazaki, um jovem cínico e apático, que vive em um completo estado de distanciamento emocional e social com seu pai, sem perspectivas para o futuro. Sua vida monótona de delinquência juvenil muda no instante em que ele conhece Nagisa Furukawa, uma garota delicada e de bom coração que, apesar de ter uma saúde delicada e repetir o ano constantemente, sonha em reviver o clube de teatro da escola. Relutantemente, Tomoya decide ajudá-la, e esse ato de bondade se torna o catalisador de sua transformação. A primeira temporada foca em Tomoya expandindo seu mundo ao se conectar com outras pessoas, ajudando-as a resolver seus profundos problemas pessoais e, no processo, curando suas próprias feridas emocionais enquanto se apaixona por Nagisa.
Em Clannad: AfterStory, segunda temporada da série, a obra revela sua verdadeira face. A
narrativa avança para a vida pós-escolar, um território raramente explorado com
tanta profundidade nos animes. Tomoya e Nagisa enfrentam as dificuldades da
vida adulta: arrumar um emprego, as responsabilidades financeiras e,
finalmente, a decisão de começar uma família. A série retrata com uma
honestidade brutal as alegrias da gravidez e o medo que a acompanha, culminando
em uma tragédia que quebra não apenas o protagonista, mas também o espectador.
O que se segue é uma jornada angustiante de luto, depressão e a difícil estrada
da reconciliação, onde Tomoya deve aprender a ser pai e a perdoar a si mesmo e o
seu passado para encontrar um novo propósito para viver.
“Não importa quantas vezes eu voltei,
eu sempre vou escolher você.” – Tomoya Okazaki
O cotidiano que nos conecta
A genialidade de Clannad reside em sua habilidade de espelhar a vida cotidiana. Enquanto muitos animes focam no fantástico, Clannad encontra o extraordinário no ordinário. A importância da obra para o nosso dia a dia está em como ela valida as nossas próprias lutas e alegrias:
- A transição para a vida adulta: A
série não termina com o "felizes para sempre" da formatura. Ela
mostra a dura realidade de encontrar o primeiro emprego, a exaustão do
trabalho braçal, a satisfação de receber o primeiro salário e a ansiedade
de sustentar uma família. São experiências universais, que conectam a
jornada de Tomoya à de qualquer jovem adulto.
- A complexidade dos laços familiares: Clannad foge do idealismo. A relação tensa de Tomoya com seu
pai não é um simples caso de rebeldia; é fruto de anos de dor,
mal-entendidos e sacrifícios não vistos. A jornada de Tomoya para entender
seu pai, somente após se tornar um, é um reflexo dolorosamente preciso de
como, muitas vezes, só compreendemos nossos pais quando trilhamos a mesma
jornada.
- O luto como um processo, não um evento: A representação do luto em After Story é magistral. Não há uma superação rápida. Vemos Tomoya se afundar em um vazio, negligenciando suas responsabilidades e a si mesmo por anos. É uma representação crua da depressão, mostrando que a cura não é linear, mas um caminho árduo de pequenos passos, muitas vezes auxiliado pela comunidade ao redor.
Clannad nos mostra que o sentido da vida
não está em grandes feitos heroicos, mas nos pequenos momentos: uma conversa na
volta da escola, o calor de um jantar em família, o esforço para fazer alguém
sorrir.
A profundidade emocional: como Clannad nos quebra e nos reconstrói
A extraordinária capacidade de Clannad em despertar nossos sentimentos reside em sua arquitetura narrativa meticulosa, que pacientemente nos prepara para depois nos desarmar. A série não se apressa em direção à sua tragédia; pelo contrário, ela primeiro nos convida a viver dentro de seu mundo. A primeira temporada, com seu ritmo cadenciado de "slice of life", cumpre o papel fundamental de construir um profundo investimento emocional. Não somos meros espectadores; somos levados a formar laços, a rir das trivialidades do dia a dia e a nos apegar genuinamente a cada personagem e à felicidade que eles, com esforço, constroem. A série nos faz amar o que Tomoya ama, e é essa fundação de afeto que torna o que vem a seguir tão pessoal e devastador.
Quando a narrativa enfim mergulha na dor, ela o faz com uma honestidade avassaladora. O sofrimento em Clannad não é o de heróis ou de mundos fantásticos; é a dor universal e palpável da perda de um ente querido, o medo da inadequação como pai, o peso do luto que paralisa e esvazia a vida de cor. Sentimos essa angústia de forma tão aguda precisamente pelo forte contraste com a alegria pura e inocente que a própria série nos fez experimentar antes. Essa justaposição brutal entre a luz e a escuridão, entre a canção da "Grande Família Dango" e o silêncio de um apartamento vazio, é o que torna o impacto emocional tão profundo e inesquecível.
Contudo,
a genialidade da obra não está apenas em sua habilidade de nos quebrar, mas
principalmente em como ela nos reconstrói. Após nos guiar pelo abismo do
desespero ao lado de Tomoya, a história nos oferece um árduo, mas crível,
caminho para a redenção. O desfecho, que integra elementos sobrenaturais de
forma simbólica, não funciona como uma solução mágica e fácil, mas sim como uma
catarse poderosa e merecida. Ele serve como uma bela metáfora de que todo o
amor, bondade e felicidade gerados ao longo da jornada possuem uma força real e
redentora, culminando em um final que valida cada lágrima derramada e reafirma
a esperança, mostrando que mesmo após a mais profunda escuridão, a reconstrução
é possível e o sofrimento pode, enfim, dar lugar a um novo e mais forte
significado para a vida.
Gustavo Coelho, natural do Rio de Janeiro (RJ), reside em Uberlândia/MG. Formado em Comunicação Social e especialista em Marketing, assim como todo bom nerd, é um apaixonado pela cultura Geek. Empresário com 45 anos, tem como hobby a contínua busca do anime perfeito. Casado, pai de uma linda filhota, entra neste mundo mágico da Literatura buscando expandir, cada vez mais, sua criatividade e imaginação.