Por Elys Linares
— E você não sente vergonha, Marta?
— Vergonha? Para falar a verdade, isso nunca me passou pela cabeça. Agora que me questiona é que penso sobre isso. Recorrendo à minha memória, não encontro motivo para me sentir envergonhada, apesar de tudo. Nem na minha infância. Eu apenas sentia que enxergava o que os outros não viam. Detalhes que poderiam passar despercebidos aos olhos comuns, traços que ninguém ousaria reparar, mas eu, com o olhar sempre rente ao chão, poderia identificar qualquer um sem precisar olhar-lhe a face. Parece-me mais um dom do que uma maldição. O que pensa?
— Para mim parece mesmo uma delicadeza que as pessoas comuns não saberiam desfrutar. Entretanto, devo lhe dizer que para uma mulher, apesar de todas as convenções sociais despóticas impostas sobre esse sexo, parece-me mais fácil confessar certas peculiaridades, talvez pequenos delitos, pequenos prazeres insólitos. Talvez porque o homem não saiba lidar com seus desejos de forma razoável. Todos sabem disso. Já marcamos no imaginário coletivo a nossa falta de traquejo social para com nossos desejos, infelizmente.
— Hum, talvez, Mário, mas veja bem: da mulher espera-se um ser doce e maternal, por isso os desejos lascivos e sórdidos parecem tão mais sujos do que possam ser na realidade. Ainda assim, em alguns casos, com a perspicácia das serpentes, pode ser que uma mulher diga atrocidades com as mais delicadas palavras, fazendo-as parecer coisas banais.
— Uma faca de dois gumes, querida! Ou atiram-na de vez na lama como pecadora ou ignoram seus traços ultrassensuais por puro desprezo dessa “coisa” pequena que sussurra na sombra, esse lado sombrio que a mulher alimenta em silêncio. Ele pode ser tão mais eficiente porque passa despercebido.
Eles gargalham juntos, zombando da ignorância dos demais, o que torna tudo ainda mais instigante e divertido. Algumas garrafas de vinho e tudo pode ser risível, mas existe dentro dos dois um farfalhar, um sentimento de que guardam segredos que escandalizariam os familiares, ainda que lidem com eles de forma tão natural. Aquela comichão que os artistas sentem ao ultrapassar as barreiras sociais em seus espetáculos: “Qual será a reação deles? Isso os chocaria de alguma forma?”. Pensam em tudo isso enquanto olham os olhos da plateia, esperando ansiosamente vê-los arregalados. No fundo todos são exibicionistas! No palco ou às escondidas. É essa a sensação que Marta e Mário sorvem devagar juntamente com o vinho.
— Hoje eu recebi uma encomenda que estava esperando há muito tempo. Os correios desviaram meu pacote e demoraram a encontrar. Eu fiquei desolado. Só espero que ainda esteja intacto.
— Algum livro novo? – pergunta ela inocentemente.
— Não! – ele sorri. – Uma encomenda de meias! – diz Mário com olhar malicioso, mas ela nem repara.
— Ah! Mas quem espera ansioso por um pacote de meias? Eu espero ansiosa pelos meus livros, minhas bebidas importadas e minhas roupas.
— Mas essas meias são especiais! Abra o pacote!
Mário lhe entrega um pacote médio, do tamanho de uma caixa de sapatos, embrulhado em plástico preto. Ela nem se importa em ler o remetente. Mete o dedo no meio da caixa e rasga o plástico.
— Vamos ver suas meias especiais! – diz enquanto retira de dentro da caixa um saco plástico transparente lacrado hermeticamente. Pelo plástico vê dois pares de meias brancas dobrados. Ela analisa e, sem precisar abrir o saco, nota que as meias parecem sujas. — Mas estão sujas essas meias! Veja! Ah! agora entendo do que se trata! – e pôs-se a rir desdenhosa e curiosa. – Não sei como vocês aguentam isso! Não está nas minhas preferências. Tome!
Joga o saco para o colo de Mário. Ele, então, pega-o, olha para ela e pergunta:
— Posso?
Ela assente com a cabeça e diz:
— Vamos lá! Abra seu saquinho de ouro volátil! – e ri a gargalhadas.
Ele cuidadosamente abre o saco, bem devagar, e encosta o nariz na pequena abertura que se formou. Fecha os olhos para sentir melhor o cheiro, inala um pouco em duas respirações profundas e após alguns segundos de deleite puro, enfim abre o saco todo. O odor de chulé exala pela sala.
— Meu Deus, Mário. Te mandaram meias ou veio junto um bicho em decomposição dentro desse saco? A sala inteira está tomada por esse chulé! – diz Marta com certo nojo e levando a mão ao nariz.
Ele não diz nada, continua cheirando a meia, esfrega-a no rosto, no nariz, nas bochechas, respira fundo a fim de sorver todo aquele aroma horroroso que sabe-se lá quantos dias estava preservado ali naquele pacote. Se reparasse bem, a embalagem foi tão bem preservada que a meia ainda estava úmida. As feições do rosto de Mário mudavam como se ele estivesse meditando e visualizando os pés que fizeram essa obra de arte fedorenta. Pendia a cabeça para trás como se pudesse beber o cheiro num gole. Mas Marta repara que seu amigo já está um pouco mais alegre do que de costume. Seu pênis completamente enrijecido desponta da calça jeans. É um membro de respeito, pois mesmo em uma calça jeans era possível observar grossura e comprimento, e não era dos desprovidos! Ela aproxima-se um pouco e abaixa-se perto do amigo para olhar melhor. É possível vê-lo pulsar dentro da calça.
— Estou surpresa, Mário, seu pau parece mais delicioso do que eu poderia imaginar. Quem se surpreendeu com o pacote fui eu! E não é com aquele que veio pelo correio.
Por fim, ele volta de um sobressalto de seu delírio e percebe que estava mais excitado do que pretendia. Rapidamente leva às mãos à calça, tentando cobrir seu pau.
— Desculpe-me, parece que exagerei – diz um pouco envergonhado.
Marta ri e muda de assunto para não tornar o momento mais constrangedor, embora os dois tivessem intimidade suficiente para falar de qualquer assunto. Mas ela estava curiosa sobre a origem do pacote.
— De onde veio essa encomenda?
Ele pigarreia um pouco, trata de enfiar as meias novamente no saco e lacra-o para que preserve ainda um pouco do cheiro e responde:
— De um bostinha do sul do país.
— Por que trata assim seu fornecedor? A julgar pelo fedor, ele teve trabalho para produzir seu produto.
— Não o defenda, querida. Se você o ouvisse... Ele venderia a própria calcinha das filhas se eu o pagasse bem. É um bostinha fraco de caráter, mas com síndrome de dominador. Faz a todo momento julgamentos maravilhosos de si mesmo e do seu pezão, como se fosse um grande empreendedor da podolatria.
Eles riem, pois sabem que esse tipo não é incomum.
— Você acha que ele tem delírios de grandeza?
— Não acho, tenho certeza. Você ainda vai poder comprovar.
— Mas aposto que ele é bonito, apesar dessas meias podres.
— Mas é claro. Eu jamais pagaria pelo chulé de um homem feio. Tenho meus princípios.
— Princípios tem, mas controle já não posso afirmar – ela responde em tom de brincadeira ainda sobre a ereção.
— Nisso as mulheres são privilegiadas, podem estar com o máximo de excitação e ainda assim ninguém perceberá se ela não quiser. Já o homem, com o mínimo de desejo já começa a dar sinais bem claros de sua condição. Isso me lembra a primeira vez que percebi que tinha esse desejo peculiar.
“Eu tinha uma amiga da escola que sempre brincávamos depois da aula. A mãe dela me adorava e eu passava longas tardes na companhia das duas, brincando, comendo bolo quentinho que a mãe dela fazia e fazendo as lições de casa. Naquela idade, minha mãe trabalhava o dia todo e eu ficava sozinho em casa, meu pai já tinha sumido pelo mundo sem dar notícias. Eu não entendia nada ainda sobre sexo e desejo. Era muito, muito jovem.
Mas, certo dia, havíamos acabado a nossa lição e estávamos conversando na sala. A minha amiga se deitou no sofá para se espreguiçar, afinal estávamos horas a fio estudando sentados nas cadeiras duras, e colocou as pernas esticadas sobre o braço do sofá, bem próximo a mim, que estava sentado na poltrona ao lado. Começamos a nos implicar, eu dizia, brincando, que ela era preguiçosa e que não gostava de estudar, que iria crescer e se tornar uma dona de casa com 7 filhos. Ela se irritava e dizia que jamais faria isso, pois não queria ter filhos e esbravejava, dando-me tapas leves no braço: “Retire o que você disse! Eu não sou preguiçosa! Só estou cansada”. Nessa implicância infantil e tentando me livrar dos tapas, comecei a fazer cócegas em seus pés. Ela gargalhava e se debatia tentando fugir, ficava com o rosto todo vermelho de tanto rir, mas quanto mais ela tentava fugir, mais eu tinha vontade de prendê-la. Foi aí que eu percebi que em dado momento eu havia prendido suas pernas contra meu peito e os pés dela estavam praticamente na minha cara. Eu também ria da minha maldade e quando em uma gargalhada eu aproximei meu nariz de seus pés e senti aquele odor delicado... Não de chulé. Ela não tinha! Era o odor normal de pele suada e talvez um pouco suja. A minha reação foi instantânea. Meu pau ficou duro na hora. Uma ereção como nunca tinha acontecido. Às vezes acontecia, claro, mas nunca daquele jeito e nunca tão enrijecido e em pouco tempo. Eu, inocente, não sabia o que pensar, não sabia elaborar aquilo e só me envergonhei. Corri para o banheiro e fiquei lá um tempo até ter condições de sair.”
— Acho que o mecanismo de defesa das crianças ao experimentarem esse tipo de coisa é simplesmente ignorar. Fingir que nada aconteceu e seguir em frente. É relativamente fácil para a mente jovem sublimar certos acontecimentos. Depois vira uma lembrança meio turva.
— Foi exatamente o que me aconteceu! Só fui repensar nisso lá pelos 17, 18 anos, quando eu já estava ali no auge da explosão de hormônios. Aí o assunto ressurgiu na minha cabeça e eu entendi, finalmente, que aquele gosto estaria para sempre no meu hall de desejos sexuais. Mas, ainda assim, me sentia completamente envergonhado como se aquilo fosse algo muito errado e que ninguém entenderia.
— Até encontrar uma comunidade inteira que gostasse do mesmo que você. Para isso a internet nos serviu bem, não é mesmo?
— Com certeza. Sinto-me menos estranho e fiquei mais feliz ainda em conhecer você, minha amiga, que também compartilha dessas peculiaridades, mas de outras maneiras.
A conversa dos dois é interrompida pelo barulho do interfone. Mário pede licença e atende. Marta ouve-o liberar a entrada de alguém no prédio, dizendo que estava esperando-o.
— Você estava esperando alguém? Eu não sabia!
— É o bostinha do Sul – diz entre risos.
— Como assim? Achei que o rapaz estava longe, já que te mandou a encomenda pelo correio.
— Estava mesmo quando enviou, mas eu te disse, o correio atrasou muito.
— Então, vou embora! Não quero atrapalhar nada.
— Não precisa, fique um pouco para pelo menos conhecê-lo. Depois você vai, se quiser, mas você sabe que eu não me importo em dividir minhas loucuras com você, acho até mais excitante com plateia.
— Sim, eu sei, mas fui pega de surpresa – fala rapidamente enquanto pega sua bolsa.
O convidado bate à porta, Mário abre e, então, a figura que surge por detrás de dele deixa Marta atordoada. É um homem alto e belíssimo, corpo definido, musculoso, algumas tatuagens à mostra, cabelos claros e olhos azuis-escuros... Não parece em nada “um bostinha”, como dizia o amigo. Ela senta-se lentamente no sofá de onde acabara de se levantar. Na sua cabeça passa a ideia de talvez ficar um pouco mais... Será que ficaria à vontade para participar dessa brincadeira entre os dois? Que mal haveria?
...
Continua...
Confira a parte 2 neste mesmo espaço.