19 de set. de 2025

Fazenda 31 de Março

Por Ricardo Novais 

No dia 31 de março de 1964 houve um golpe infausto na alma do povo brasileiro. Começou uma tortura física e psicológica no Brasil. Sempre existiu tortura, mas o país entrou na institucionalização da barbárie, tanto a oficial como a dos centros clandestinos de tortura. 

Na capital de São Paulo, na região afastada de Parelheiros e Marsilac, havia a Fazenda 31 de Março. Até o nome do lugar é assombroso. O delegado Fleury e seus asseclas se divertiam nesse sítio como alguém que vai para uma casa de campo desestressar com os amigos; entretanto, a diversão era torturar e assassinar seres humanos como alguém que vai à zona rural caçar tangarás. 

Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones nasceu no sul do país. Nos anos 1960, foi morar e estudar no Rio de Janeiro. Casou-se com Stuart Edgar Angel Jones, filho de Zuzu Angel. Edgar foi assassinado com a boca enfiada em um cano de escapamento de um jipe militar. Nunca encontraram seu corpo. Zuzu Angel procurou o filho incansavelmente e, por causa disto, também foi assassinada pelo regime em um crime jamais resolvido. Sônia Maria, que também havia sido presa, acabou sendo absolvida pelo tribunal militar devido a portaria do imponderável. 

Sônia Maria Jones, viúva, exilou-se na França onde progrediu sua carreira intelectual. Decidida a lutar e resistir contra o regime que assolava a liberdade em sua terra natal, voltou ao Brasil onde começou a trabalhar na clandestinidade. Conheceu Antônio Carlos Bicalho Lana, que viria a se tornar seu companheiro. 

Algum tempo de relógio depois, Sônia e Antônio foram descobertos por agentes do DOI-CODI do II Exército, em Santos. Abordados no litoral paulista, levaram-nos com destino à cidade de São Paulo. O coronel Canrobert Lopes da Costa estuprou Sônia por 48 horas no DOI-CODI do Rio de Janeiro com o uso de um cassetete, o que lhe causou hemorragia interna. Debilitada, enviaram-na novamente a São Paulo, ao DOI-CODI/SP. Deceparam-lhe um de seus seios. 

Sonia Maria e seu companheiro Antônio Carlos foram encapuzados, colocados dentro de um Fusca de Fleury, amordaçados, cortando quilômetros e quilômetros entre solavancos da zona sul paulistana até a Fazenda 31 de Março, na zona rural de Parelheiros e Marsilac. 

Torturados e mortos nas dependências de diversão dos agentes do regime, levaram os corpos até o bairro de Santo Amaro e simularam um tiroteio com balas de festins sendo atiradas nos cadáveres já há muito sem vida. Ambos foram enterrados em um cemitério clandestino na zona leste da cidade como indigentes. Apenas décadas depois descobriu-se quem eram aqueles dois enterrados sem nome e sem história. Havia uma história. Era parte da história do Brasil, de uma lutadora brasileira: Sônia Maria Lopes de Moraes Angel Jones.


Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo tempo; o último gole é sempre a saideira.