11 de set. de 2025

‘A vergonha’ – a identidade estruturada pela linguagem

Por Whisner Fraga 

Acho desnecessário apresentar Annie Ernaux (1940) ao público brasileiro. Após o Nobel aconteceu uma avalanche de artigos sobre a obra dela e, recentemente, uma polêmica envolvendo questões de conteúdo versus estilo, o que a tornou ainda mais badalada por aqui. Direto ao ponto, inicio essa breve jornada pela novela A vergonha me atendo a dois pontos que para mim são fundamentais.

Primeiro, a tradução de Marília Garcia. Publicado originalmente em 1997, pela Gallimard, a linguagem não traz grandes desafios a quem se arriscar a verter o texto para o português. Nesta edição de 2022 da Fósforo, que resenho aqui, encontrei alguns pequenos deslizes, que credito à falta de uma revisão mais acurada. Nada tão comprometedor assim, mas também não é bonito ler os errinhos constantes na edição.

Segundo, a classificação da obra. A ficha catalográfica da edição brasileira traz o termo “romance autobiográfico”. Para mim é um excelente rótulo. Por estas bandas isso é sinônimo de autoficção, o que traduz de forma razoável o projeto literário da escritora francesa. Annie Ernaux parte de uma experiência pessoal, expandindo-a para algo maior, tanto em termos espaciais, sugerindo interpolações para outros territórios sociais, como também temporais, sugerindo uma universalidade intencional. 

A narradora e a escritora, em última análise, passam a ser parte do corpo coletivo por meio do individual, do privado, partindo da intimidade da convivência familiar para alcançar uma cultura comum, uma época, um retrato, para resumir. A expansão é gradativa: ela parte do lar, chega à vizinhança e o caminho acaba por desembocar no bairro, na cidade e, finalmente, no país. Annie Ernaux usa, como ponto de partida, a memória e tem consciência de que relembrar é inventar e ainda mais do que isso: reinterpretar. 

Os primeiros parágrafos deste livro são fundamentais, é preciso prestar atenção ao que eles apresentam. A narradora, uma pré-adolescente de doze anos, presencia uma discussão entre os pais, que descamba para a violência explícita. O pai agarra a mãe, a arrasta para a mercearia que a família toca e, segurando a mulher pelo pescoço ou pelos ombros, ameaça a companheira com uma pequena foice usada para cortar lenha. É claro, essa agressão desencadeia um enorme trauma na criança, tanto é que ela só consegue escrever sobre isso quarenta anos após o ocorrido. 

O livro trata de vontades não concretizadas e da vergonha pela falha e pela incompreensão, quando a recordação é traduzida para outro tempo, outro espaço e outro suporte. Annie Ernaux tem consciência de que a linguagem é um filtro para a realidade. A narrativa, portanto, é um reexame e é, paradoxalmente, uma ficção. Esta cena reconstruída quatro décadas depois, em forma de texto, com todas as implicações referentes ao tempo de espera, de maturação, é também uma farsa, a verdade possível. 

A partir deste quase assassinato, a narradora descobre seu lugar na sociedade, compreende que faz parte de uma família provinciana, em que a mãe é uma religiosa fervorosa, dominadora e o pai um homem comum, machista, insípido. Esse provincianismo incute na narradora um sentimento de inferioridade e daí a vergonha diante de tudo. Para compensar essa sensação, ela precisa se destacar em tudo o que faz, só que de forma um pouco relapsa, despretensiosa, para, ao mesmo tempo, ser aceita. 

Annie Ernaux novamente recorre a vários tipos de objetos para reconstruir a memória e reorganizar os fatos. Já no início temos a narradora analisando fotos antigas, tentando verificar com estes retratos se o passado factual coincide com a lembrança. Mas todos os documentos são, igualmente, apenas uma versão, um instante capturado, um instantâneo e são alvo de interpretações. Ainda que a narradora evoque essas provas, elas devem passar pelo crivo da escritora, transformada por novas experiências. Em determinado momento da obra, pode-se ler a afirmação, contundente: “Não existe memória verdadeira sobre si mesma.” 

A linguagem de Annie Ernaux é crua, sem floreios, direta, objetiva, mas centrada na análise da própria língua, dos limites da palavra. Não há nenhum tipo de excesso, o texto é límpido, enxuto, simples, ainda que o tema e as análises não sejam. A escritora quer, acima de tudo, narrar um fato, em toda a sua violência rude e não deseja que nada se interponha a este objetivo, nem sequer o suporte escolhido para contar: nada, nem a língua pode ser um empecilho. 

 

Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba/MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. É professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.