Por Gustavo Coelho
Diretor: Florian Zeller
Roteiro: Florian Zeller e Christopher Hampton
Elenco: Anthony Hopkins, Olivia Colman, Olivia Williams, Mark Gatiss,
Imogen Poots e Rufus Sewell
Lançamento: 2020
Poucos filmes ousam ir além de contar uma história. "Meu Pai" (The Father), dirigido por Florian Zeller, é uma dessas raras e preciosas obras: nos faz sentir o filme na nossa própria pele. Mais do que um drama sobre a velhice e a doença, trata-se de um thriller psicológico que nos aprisiona no labirinto de uma mente que se desfaz, transformando a experiência passiva de assistir a um filme em um exercício visceral e inesquecível de empatia forçada.
Sinopse (sem spoilers)
A trama, em sua superfície, parece simples. Acompanhamos Anthony (Anthony Hopkins), um homem idoso, orgulhoso e teimoso que mora em Londres e rechaça todas as cuidadoras que sua filha, Anne (Olivia Colman), tenta contratar. A situação se agrava quando Anne lhe dá a notícia de que está de mudança para Paris, deixando Anthony diante do desamparo iminente.
O que torna o filme genial é como a história se desenrola. A narrativa abandona a linearidade e adota a perspectiva confusa e fragmentada de Anthony. Nós, como público, somos trancados dentro de sua mente. O seu apartamento, nosso único cenário, muda sutilmente de uma cena para outra; móveis mudam de lugar, rostos de pessoas se alteram, e conversas se repetem com variações perturbadoras, nos deixando tão desorientados quanto o protagonista. Tentamos desesperadamente montar o quebra-cabeça, apenas para descobrir que as peças não se encaixam, pois a realidade de Anthony não obedece mais às regras do tempo e do espaço.
“Eu acho que estou perdendo minhas folhas.” – Anthony
A importância de "Meu Pai" transcende o cinema. Ele serve como um espelho doloroso para uma realidade que milhões de famílias vivenciam diariamente. Em um mundo que envelhece, lidar com pais e avós que sofrem de demência é um cotidiano para muitos. O filme é uma ferramenta poderosa para a compreensão, pois ele inverte a perspectiva: em vez de focarmos apenas na dor e frustração do cuidador, somos forçados a entender a lógica por trás do comportamento do enfermo.
O filme nos mostra que a teimosia, a desconfiança e a agressividade de Anthony não são maldade, mas sim reações de medo e confusão de um homem que sente o chão desaparecer sob seus pés. Para qualquer um que já teve que cuidar de um parente nessa condição, a paciência e o amor de Anne, misturados à sua exaustão e tristeza, são um retrato fiel e comovente. O filme nos conecta com o medo universal de perdermos nossas faculdades mentais, nossa identidade e, por fim, nos tornarmos um fardo para aqueles que amamos.
A profundidade do filme não é consequência apenas de seu tema, mas também de sua execução impecável, que desperta fortes sentimentos no espectador por três motivos principais:
1. A cinematografia subjetiva: A genialidade de Zeller foi usar a própria linguagem do cinema (edição, design de produção, roteiro) para simular a demência. Não estamos vendo um filme sobre um homem confuso; nós estamos confusos com ele. O apartamento que se transforma sutilmente é o nosso labirinto. As trocas de atores para o mesmo papel nos fazem duvidar de nossa própria percepção. Essa armadilha narrativa nos impede de ser observadores passivos e nos tornamos participantes da angústia de Anthony.
2. A performance monumental de Anthony Hopkins: O ator entrega o que é, talvez, a maior atuação de sua carreira. Ele não interpreta um doente, mas um homem completo em processo de desintegração. Em um piscar de olhos, ele transita do charme intimidador à raiva infantil, da lucidez cortante ao pânico aterrorizado. Vemos lampejos do homem brilhante que ele foi, o que torna a sua decadência ainda mais trágica.
3. O desmonte da identidade: O filme desconstrói metodicamente tudo o que define uma pessoa: seu lar, suas memórias, seus relacionamentos e sua noção de tempo. A cena final em que Anthony, reduzido a uma vulnerabilidade infantil, chora nos braços de uma enfermeira chamando pela mãe, é o ápice dessa demolição. É a representação crua da perda do "eu".
"Meu Pai" é uma obra-prima sobre a fragilidade da mente humana. A frase final de Anthony, "Sinto que estou perdendo todas as minhas folhas", é uma das metáforas mais belas e dolorosas do cinema para a perda da memória e da identidade. As memórias são as folhas que compõem a árvore de quem somos; sem elas, resta apenas o tronco nu, exposto e vulnerável.
O filme é uma experiência difícil, por vezes claustrofóbica, mas essencial. Ele nos força a confrontar o envelhecimento e a doença não como problemas distantes, mas como uma condição humana fundamental. Acima de tudo, é um chamado à compaixão, um lembrete de que, por trás de um olhar perdido e de uma mente confusa, ainda existe uma pessoa inteira, com uma história rica, mesmo que ela mesma não consiga mais acessá-la.