Por Ricardo Novais
Entrei em um bar e, enquanto aguardava amigos para o happy hour, fiquei a observar dois homens que discutiam sobre política na mesa em frente. Discutiam tão alto que era possível ouvir com exatidão o motivo do entrave.
__ Você é idiota, Carlos! É claro que o governo neoliberal traz progresso ao país...
__ Não, senhor! O neoliberalismo enriquece uma casta e o povão fica na merda! O nosso país deveria seguir a política dos países nórdicos...
Era uma discussão tão superficial que logo me desinteressei. Após um quarto de chope, os meus amigos chegaram. Alguma bebida, risos e piadas ao estilo do mestre Ary Toledo depois e eu já estava meio bêbado; meio bêbado é um eufemismo, caro leitor, já que não existe ebriedade pela metade.
__ Então você não acha que o campeão de 87 é o Flamengo? – questionei um.
__ Claro que não, Heitor! É o Sport do
Recife...
Embora fossemos de meia-idade, a nossa discussão era sobre futebol e coisas relacionadas ao ambiente de garotos da 5ª série.
De repente, olhei para frente e vi os dois camaradas que estavam discutindo política saindo do bar, juntos e abraçados, porta fora. A dona leitora bem sabe, a curiosidade alheia é a salvação do tédio do espelho. Então chamei um garçom e lhe perguntei se sabia quem eram aqueles dois.
__ Não sei, senhor. Mas acho que se conheceram hoje. Eles chegaram antes do senhor... Bem, quando eles chegaram, eu os ouvi falando... Apresentaram-se formalmente... Acho que tinham marcado o encontro pela internet. Por quê?
__ Por nada.
Acabei de beber, dei um abraço nos meus amigos e saí do bar. Poucos metros, vi alguém caído na calçada. Aproximei-me, já havia umas cinco ou seis pessoas em volta. Reconheci o sujeito agonizante na calçada: era um dos homens que estava no bar discutindo política, já moribundo; não tinha sinal do outro.
Um senhor velho, de barba branca bem rala, que parecia velar o local, abaixou e sumiu com o relógio do morto. Veio mais gente; moradores em condição de rua, seguranças de boates, funcionários do metrô, executivos que estavam saindo do trabalho, duas mulheres da vida e um travesti alto.
A esta altura, o morto já tinha perdido a carteira, o celular, a gravata e a honra política. Chegou a polícia. A polícia chamou o SAMU, mas depois disseram que iam aguardar o carro do IML. O cadáver, mais político do que nunca, aguardava o rabecão e o seu esquife.
Passei bem um quarto de hora a admirar o espetáculo da morte na república. Depois me afastei, devagar, reflexivo de quem seria o cadáver, de que lado do Fla-Flu ideológico ele se encaixava, em vida e em morte; cheguei em casa e fiquei o resto da noite acordado. Procurei e procurei uma posição política e de ética em uma rede social. Não achei nada além de julgamentos republicanos, esparsos e rancorosos. Perto de amanhecer, eu desisti, e fui ler as notícias esportivas.
Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve
porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem
ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance
O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da
pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo
tempo; o último gole é sempre a saideira.