Por Whisner Fraga
A escritora mexicana
Fernanda Melchor apresenta, em Temporada de Furacões (2017), uma obra
de singular intensidade que provoca, inquieta e instiga o leitor desde suas
primeiras páginas. Publicado no Brasil pela editora Mundaréu, com tradução de
Antonio Xerxenesky, o romance constitui-se como uma imersão vertiginosa nas
camadas mais sombrias das estruturas sociais latino-americanas, tendo como
cenário a fictícia vila de La Matosa, no interior do México.
Embora seu ponto de
partida seja o assassinato de uma figura enigmática — conhecida como “a Bruxa”,
uma curandeira temida e buscada por aqueles em desespero —, o foco narrativo
transcende o mistério criminal. O cerne da obra reside naquilo que o crime revela
sobre o contexto em que foi praticado: um ambiente social marcado por
misoginia, exclusão, miséria extrema, negligência institucional e normalização
da violência.
Do ponto de vista
formal, Melchor adota uma estrutura narrativa arrojada, baseada em capítulos
que se desenvolvem por meio de monólogos contínuos, nos quais diferentes
personagens — jovens transgressores, mulheres violentadas, indivíduos à margem
da sociedade — compartilham suas perspectivas e vivências. Essa estratégia,
próxima ao fluxo de consciência, provoca uma leitura densa e imersiva,
conduzindo o leitor ao âmago da psique dos personagens, todos profundamente
afetados por traumas, ressentimentos e desesperança. As construções frasais são
extensas, entrelaçadas por uma linguagem popular permeada de gírias, o que
confere verossimilhança e brutalidade à prosa.
Tal estilo constitui,
simultaneamente, um dos maiores méritos e desafios da leitura. A complexidade
formal exige atenção e disposição do leitor, podendo gerar estranhamento
àqueles habituados a formas mais tradicionais de narração. Ainda assim, é
precisamente essa estrutura que dá vida à atmosfera opressiva da narrativa —
uma ambiência marcada por calor sufocante, angústia latente e iminência
constante de violência.
Temporada de Furacões
delineia um retrato contundente da América Latina periférica. A autora
desconstrói discursos hegemônicos de progresso e ordem, revelando as estruturas
patriarcais, classistas e machistas que perpetuam a exclusão e a barbárie. Sua
crítica é incisiva e fundamentada, evitando, no entanto, julgamentos
moralizantes ou soluções fáceis.
Os personagens são
profundamente complexos, jamais reduzidos a estereótipos. Norma, Yesenia,
Brando e Luismi ilustram figuras trágicas que oscilam entre a condição de
vítimas e a de algozes, inseridos em um ciclo contínuo de opressão. Não há
espaço para redenção ou alívio: é justamente nesse desconforto que reside a
potência literária da obra.
Importa ressaltar,
todavia, que esta não é uma leitura leve. A descrição crua de episódios de
abuso sexual, feminicídio e outros tipos de violência pode ser emocionalmente
impactante, sendo necessário preparo por parte do leitor. Ainda assim, trata-se
de uma obra de relevância inegável, tanto pela sofisticação estética quanto
pela urgência temática.
Temporada de Furacões constitui-se como uma realização literária de extrema força simbólica e crítica. Fernanda Melchor concebe uma narrativa destemida, visceral e inovadora, que não se propõe a oferecer conforto, mas sim a confrontar o leitor com as realidades mais áridas de uma sociedade marcada por desigualdades, injustiças e abusos. Uma leitura exigente, mas indispensável para quem busca compreender, por meio da literatura, as múltiplas facetas da violência estrutural na América Latina contemporânea.
Whisner Fraga nasceu em
Ituiutaba/MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. É professor universitário
e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para
o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o
canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores
contemporâneos. É editor na Sinete.