10 de ago. de 2025

Um retrato da violência estrutural na América Latina

Por Whisner Fraga

 

A escritora mexicana Fernanda Melchor apresenta, em Temporada de Furacões (2017), uma obra de singular intensidade que provoca, inquieta e instiga o leitor desde suas primeiras páginas. Publicado no Brasil pela editora Mundaréu, com tradução de Antonio Xerxenesky, o romance constitui-se como uma imersão vertiginosa nas camadas mais sombrias das estruturas sociais latino-americanas, tendo como cenário a fictícia vila de La Matosa, no interior do México.


 

Embora seu ponto de partida seja o assassinato de uma figura enigmática — conhecida como “a Bruxa”, uma curandeira temida e buscada por aqueles em desespero —, o foco narrativo transcende o mistério criminal. O cerne da obra reside naquilo que o crime revela sobre o contexto em que foi praticado: um ambiente social marcado por misoginia, exclusão, miséria extrema, negligência institucional e normalização da violência.

 

Do ponto de vista formal, Melchor adota uma estrutura narrativa arrojada, baseada em capítulos que se desenvolvem por meio de monólogos contínuos, nos quais diferentes personagens — jovens transgressores, mulheres violentadas, indivíduos à margem da sociedade — compartilham suas perspectivas e vivências. Essa estratégia, próxima ao fluxo de consciência, provoca uma leitura densa e imersiva, conduzindo o leitor ao âmago da psique dos personagens, todos profundamente afetados por traumas, ressentimentos e desesperança. As construções frasais são extensas, entrelaçadas por uma linguagem popular permeada de gírias, o que confere verossimilhança e brutalidade à prosa.

 

Tal estilo constitui, simultaneamente, um dos maiores méritos e desafios da leitura. A complexidade formal exige atenção e disposição do leitor, podendo gerar estranhamento àqueles habituados a formas mais tradicionais de narração. Ainda assim, é precisamente essa estrutura que dá vida à atmosfera opressiva da narrativa — uma ambiência marcada por calor sufocante, angústia latente e iminência constante de violência.

 

Temporada de Furacões delineia um retrato contundente da América Latina periférica. A autora desconstrói discursos hegemônicos de progresso e ordem, revelando as estruturas patriarcais, classistas e machistas que perpetuam a exclusão e a barbárie. Sua crítica é incisiva e fundamentada, evitando, no entanto, julgamentos moralizantes ou soluções fáceis.

 

Os personagens são profundamente complexos, jamais reduzidos a estereótipos. Norma, Yesenia, Brando e Luismi ilustram figuras trágicas que oscilam entre a condição de vítimas e a de algozes, inseridos em um ciclo contínuo de opressão. Não há espaço para redenção ou alívio: é justamente nesse desconforto que reside a potência literária da obra.

 

Importa ressaltar, todavia, que esta não é uma leitura leve. A descrição crua de episódios de abuso sexual, feminicídio e outros tipos de violência pode ser emocionalmente impactante, sendo necessário preparo por parte do leitor. Ainda assim, trata-se de uma obra de relevância inegável, tanto pela sofisticação estética quanto pela urgência temática.

 

Temporada de Furacões constitui-se como uma realização literária de extrema força simbólica e crítica. Fernanda Melchor concebe uma narrativa destemida, visceral e inovadora, que não se propõe a oferecer conforto, mas sim a confrontar o leitor com as realidades mais áridas de uma sociedade marcada por desigualdades, injustiças e abusos. Uma leitura exigente, mas indispensável para quem busca compreender, por meio da literatura, as múltiplas facetas da violência estrutural na América Latina contemporânea. 

 

Whisner Fraga nasceu em Ituiutaba/MG (1971) e atualmente reside em São Paulo. É professor universitário e autor de mais de uma dezena de livros de ficção, tendo contos traduzidos para o inglês, alemão e árabe. Escreve para o coletivo “Crônica do dia” e mantém o canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que resenha obras de escritores contemporâneos. É editor na Sinete.