6 de jul. de 2020

Tempo de cão (capítulo 1)

Por Marcia Barbieri

Livro zero – Anatomia dos mortos

Era gorda e grande. Essas são as impressões mais fortes que guardo daquela tarde. O peso quase insuportável do caixão e o sol comendo meus miolos. Não deveria haver enterros nas tardes quentes. As flores das coroas estavam murchas, não aguentaram a quentura. Meu corpo estava empapado de suor. Uma perna raspava na outra e a cada passo ficava mais incômodo. Queria fumar, mas era impossível manter uma brasa na boca. Espero morrer no inverno. Não vejo cabimento a pessoa se extinguir justamente no verão. Olhava para a cara de Donana e ela parecia se divertir às minhas custas. Menino tonto, carrega direito esse caixão, se não se comportar te dou uma sova e ainda conto tudo para o seu pai. Era mesmo uma fofoqueira, não duvido que fosse se queixar de mim ao meu pai. Não coube em um caixão convencional, tiveram que fabricá-lo às pressas, ninguém imaginaria que um dia ela morresse. Dava nó até em pingo d’água. Todos do povoado juravam que ficaria para semente. Estavam enganados. Parece que Donana fizera questão de engordar o quanto pode nos últimos anos, sabia que assim ninguém esqueceria do tamanho da sua presença. Eu e mais cinco homens carregavam o seu caixão, no entanto, a carga era tão descomunal que uma das alças quebrou, fazendo com que todos perdessem o equilíbrio e deixassem o corpo cair. Não nos sentíamos culpados com isso, poucos teriam nossa coragem. As suas roupas ficaram sujas e amarrotadas. Demoramos mais de meia hora para ajeitar a defunta novamente e seguir o cortejo. Alguns gatos pingados, o dono da mercearia, a benzedeira, um homem que se dizia padre e meia dúzia de curiosos. Justo ela, o seu sonho era um velório lotado, em que as pessoas disputassem espaço para se despedir. Não perdia um enterro, dizia que assim garantiria uma morte farta. Donana fizera questão de morrer no dia mais quente do ano. O ventre estava enorme, tínhamos a impressão que estava prenha da humanidade inteira. No entanto, era só a gordura acumulada ao longo da existência. 


Loquinho vinha logo atrás e se pendurava no corpo da velha, deixando nossa obrigação ainda mais insustentável. Acorda macaquinha, vamos, acorda macaquinha preguiçosa. Não seja boba menina para de brincar de morta vamos logo acorda coisinha feia vem correr atrás de Loquinho Loquinho está cansado de chamar vem vem logo macaquinha feia macaquinha danada se não pular logo daí vou te pegar de cinta. Loquinho era quase tão velho quanto Donana, mas tinha juízo de um garoto de cinco anos. Era engraçado quando uma criança habitava o corpo desgrenhado de um velho. Confundia morrer com dormir, seu afeto era tão sincero quanto o dos animais diurnos. Os seus pensamentos eram tão leves que recordavam passarinhos, girassóis e beija-flores. Às vezes, sem querer falava alguma sapiência, o resto era só bobagem mesmo. Vamos, Loquinho, deixa a gente passar, sai de cima de Donana, ela quer dormir sossegada, vamos, sai de cima, prometo que daqui a pouco te compramos um pirulito, vai, se afasta um pouquinho, amanhã vocês brincam mais. Tentava a todo custo despertar a velha amiga, alternava doçuras e xingamentos, enraivecido por ela se dar ao luxo de um sono tão profundo em pleno sol a pino. As outras velhas se negaram a participar do cortejo, tinham medo de espiar a morte e a morte resolver levá-las. Não seria improvável, afinal, já faziam peso sobre a terra faz tempo, não seria estranho se, de repente, desencarnassem. Ficaram confinadas em suas casas, olhando a tragédia pela janela, como se a morte não pudesse atravessar suas venezianas. Quanto a mim, eu ainda era jovem, teria a vida inteira para construir minha mortalha. Meu pai não permitiria que eu morresse tão cedo. Loquinho faleceu uma semana depois, dizem que seu coração parou, não suportou a dor da lonjura.