7 de jul. de 2020

Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu

Por Milton Rezende


A verdade sobre a mentira

Tenho dito mentiras

sem tomar consciência

de sua contextura falsa.

 

Não tenho desmentido o que digo

pois tenho a concepção de que minto

sobretudo para mim mesmo.

 

Sendo assim as minhas mentiras

não podem acarretar

na perda de qualquer afeição.

 

E já que é precisamente sobre a falsidade

que se alicerça o convívio entre os homens,

as palavras de mentira ou verdade que eu disser

nada significam de permanente num relacionamento.

 

Mas não posso deixar de convir

que assim fazendo, a cada dia

eu amanheço mais distante de mim.

  

Aguaceiro

A chuva cessou de chover

e já agora eu posso

tirar as mãos dos bolsos

e atravessar a rua.

 

Mas já não tenho mãos

e nem tampouco posso

atravessar esta rua, pois

a água levou-me as pernas.

 

E a rua, embora chovida, está seca.

Eu fui a chuva que choveu e ninguém viu.

 

Identificação

Identifico-me com a noite

e com o que ela traz

de específico a si mesma,

e assim fazendo, aceito

o convívio de seres opacos

e da nova ordem e estado de coisas

que o escuro inaugura.

Identifico-me com o avesso

sou aliás o próprio avesso de mim,

e assim sendo, conheço

as esquinas sombrias

nas quais se disfarça

a inexorável nulidade.

Volto de manhã para casa,

e num balanço isento da noite

nenhum acréscimo se me acrescentou

de forma permanente.

Voltei eu mesmo sozinho e íntegro,

apesar das concessões necessárias

ao convívio comum entre os homens.

Nada ganhei e também nada de mim

se perdeu, exceto esta vida

que amanhece mais velha.


Do livro O acaso das manhãs (Edicon, 1986). Pedidos de exemplares pelo e-mail coisasprobule@gmail.com. Preço: R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.