Por Allyne Fiorentino
Muitos assuntos vieram à tona nessa quarentena. Alguns temas, que deixamos de pensar durante anos por fazerem parte de um discurso recorrente e que muitas vezes beira o senso comum, podem ter sido reavivados por esse momento pandêmico.
Não sem alguma confusão, a temática da “leitura” parece ser tão recorrente que chegam a ser quase monótonas as afirmações: “é importante ler”, “ler é viajar sem sair do lugar”, “a leitura é o alimento do cérebro” etc. Mais recentemente, ao modo dessas máximas de fácil aceitação, as perguntas sobre leituras têm aumentado bastante: “quantos livros você leu na quarentena?” “Mas você não leu nenhum livro na quarentena?”. Às vezes, a pergunta vem de amigos e conhecidos das redes sociais, outras vezes podem vir diretamente de chefes e superiores do trabalho.
Nesse período de reclusão, surgiu a “obrigatoriedade de leitura do quarentener”, pois a relação “estar em casa” parece ter sido diretamente proporcional a “estar sem fazer nada”, ou seja, o simples fato de ocupar o espaço geográfico da moradia parece desocupar os horários antes ocupadíssimos por tarefas “mais importantes”, tais como: trabalhar, cuidar dos filhos, fazer compras etc.
Isso nos revela duas posições curiosas: a primeira delas é sobre a maneira como lidamos (ilusoriamente?) com o tempo e o espaço em nossas vidas. É compreensível que a um paulistano que trabalhe mais de 10 horas por dia e passe cerca de 2 horas no trânsito só ocupe o espaço da própria moradia durante umas 3 horas diariamente antes de dormir e recomeçar a sua rotina no dia seguinte, esse fetiche de “estar em casa” e “ócio” parece se justificar.
Entretanto, para muitos daqueles que puderam continuar trabalhando na modalidade home office, não só o trabalho não parou, como talvez tenha triplicado, uma vez que as tarefas domésticas – antes não realizadas pelo afastamento geográfico casa-trabalho ou ainda realizadas por terceiros, como diaristas e empregadas – agora deveriam ser feitas pelo próprio morador(a) se houvesse o desejo de permanecer em um ambiente limpo e agradável que serviria, também, para o trabalho formal. Junte-se a essas tarefas o cuidar dos filhos para aqueles que os possuem e poderemos imaginar a quantidade de tempo dispendido em tarefas domésticas! Esse trabalho invisibilizado durantes anos na figura da “dona de casa” continua a ser invisível quando acreditamos que “estar em casa” é garantia de mais tempo livre.
Portanto, note como a falta de tempo para outras atividades jamais perpassa o duro tema da quantidade de tempo perdido (de vida) produzindo e acumulando capital, mas, sim, ao fato de não ocupar um espaço que se destina ao lazer e ao descanso, como se um desses fatos não tivesse ligação direta com o outro.
O segundo ponto, e talvez o mais contraditório, é relacionar leitura com ócio. Não que a leitura não seja uma maneira maravilhosa de aproveitar seu tempo livre (claro que é!), mas a visão de leitura como lazer vai de encontro à importância da leitura para a formação do ser humano. Se a atividade de ler livros é tão crucial para o desenvolvimento pleno do ser humano e isso é aceito pela maioria das pessoas, por que só dedicamos tempo a ela nos momentos que a sociedade considera “menos importantes”, ou seja, no momento “livre” em que não estamos fazendo as tarefas consideradas “mais importantes”? Ler não é apenas brincar, não é apenas passar o tempo, então por que não nos questionamos sobre o fato de tudo ser mais importante do que ampliar nosso conhecimento?
O número de leitores no Brasil vem aumentando, sim! É comum encontrar leitores nos ônibus, nos metrôs, na rua, todos compenetrados em seus livros... E isso é maravilhoso! Mas eles são a resistência. A resistência a um mundo que tem pressa. E a pressa atropela os desejos humanos da simplicidade e da sabedoria. O que não questionamos é que o incentivo à leitura não incentiva, também, a reflexão sobre o tempo para ela, talvez porque esse pensamento seja muito perigoso. E se começássemos a questionar sobre esse tempo de vida que nos é roubado pela urgência da sociedade? E se começássemos a pensar que as coisas verdadeiramente importantes são feitas no pouco tempo intermitente entre as obrigações que criaram para todos nós?
Por tudo isso, não devemos nos culpar pela falta de
tempo para uma leitura, nem aceitar esse tipo de cobrança se quem a cobra
continua usufruindo da maior parte do nosso tempo para trabalhos que nos
emburrecem aos poucos, seja pela repetição, seja pela opressão, seja pela
mecanização. Se algo é muito importante para a formação do ser humano, é
preciso tratá-lo com a devida seriedade. Sempre esperam o melhor de nós, mas
não nos fornecem o tempo para isso.