13 de mai. de 2012

Um timaço argentino - Malagueta # 28

Por Daniel Lopes

       Nossos vizinhos argentinos gostam muito de comparar coisas incomparáveis. Eles, frequentemente, bradam, aos quatro ventos, que Maradona é Deus e que Pelé não passa de um santinho menor. Não bastassem os números, Pelé fez três vezes mais gols que o Deus argentino, nós ainda teríamos o desenvolvimento de cada um dos atletas nos fundamentos básicos do futebol. Maradona era canhoto, (e que canhoto!) mas Pelé, em se tratando das pernas, era ambidestro. Maradona era um tremendo driblador, Pelé também. Aqui empatamos. Pelé era um exímio cabeceador, Maradona até quando fez gol de cabeça, fez gol de mão, La mano de díos, segundo ele. Por enquanto, o placar está em três a um, certo? Em se tratando da qualidade do passe, acredito que ambos empatam novamente, o que deixa o placar em quatro a dois. Vitória de Pelé e do nosso futebol. Mesmo assim, Maradona ainda tem um diferencial, talvez um golzinho a mais a favor dele: o argentino ganhou uma copa sozinho em 1986, coisa que Pelé não chegou a fazer. Garrincha talvez tenha conseguido tal feito em 1962, mas Garrincha é uma outra história.
            Nosso futebol é melhor do que o deles, não há dúvida. Como diria a Preta Gil, (credo!) se eles são bi, nós somos penta, e cinco sempre foi mais que dois.
            No futebol não dá pra eles, entretanto não é necessariamente de futebol e nem desse tipo de time que quero tratar aqui. O objetivo deste artigo, ou resenha, ou sei lá o que... é levantar a bola para o timaço da literatura argentina no século vinte. São tantos nomes que é até difícil se ater a qualquer um deles em especial. Fica difícil qualquer tipo de escolha, ou eleição, num time que tem jogadores, digo, escritores, do porte de Roberto Arlt, Adolfo Bioy Casares, Ernesto Sábato, Julio Cortázar e Jorge Luís Borges. Seria delicioso, se eu tivesse paciência, debruçar-me numa análise abrangente e profunda da obra de todos estes escritores. O grande problema é que sou preguiçoso. Macunaimado ao extremo, talvez. Portanto, não me vou delongar além da paciência do leitor e nem vou além da minha própria paciência. Só quero levantar a bola, quem quiser, que corra atrás dos livros dos caras e da crítica especializada. Tratarei aqui, portanto, de apenas um ou outro texto dos últimos três escritores citados anteriormente.
            Vamos lá! Mãos à obra! Não, ainda não, antes de nos debruçarmos, ainda que de maneira preguiçosa, sobre a obra de Sábato, Cortázar e Borges, é necessário esclarecer um tópico, para que este nosso texto, que é seu também leitor, não fique manco e seja logo condenado por falta de paralelismo semântico, ou sintático, ou de qualquer outro gênero. É o seguinte: comecei este trabalho, comparando o futebol brasileiro ao argentino, seria, portanto, lógico na tessitura das ideias, que agora eu continuasse comparando escritores brasileiros e argentinos. É óbvio que também temos um timaço no século vinte, com escritores do porte de um Guimarães Rosa, um Graciliano Ramos e uma Clarice Lispector. Acontece que literatura é Arte e eu acho desonesto com qualquer artista a comparação. Até porque, todo artista é o seu universo, e todo ator, todo pintor, todo escritor... enfim, todo artista, grita a sua verdade, e entrega a sua alma, e faz o seu melhor. Não que os atletas também não façam tudo isto, mas Arte é outro papo. Ainda que existam obras de Arte melhor, ou pior realizadas, todo artista é grande, e é bom, e é bonito.
            Isto posto, tudo esclarecido e o texto, mesmo que capenga, já devidamente amparado pelas muletas da explicação, vamos ao que interessa, que são os três escritores fodões aí do lado, digo... aí de cima. Sem querer confundir espaço geográfico e textual. Se é que me entendem.
            Comecemos por Borges que é um escritor de textos curtos, mas amplos de significação. Pequenas pérolas, eu diria, e qualquer um pode dizer, ainda que seja piegas a comparação entre textos e pérolas. Atenhamo-nos, pois, a uma destas pérolas, melhor, destes contos, o completo: Pierre Menard, El escriptor del Quijote.
            Resumidamente, o texto conta a história de um escritor que acaba de morrer, cuja maior obra é ter conseguido reescrever dois capítulos do Dom Quixote. Visto assim, parece simples, mas esta narrativa dá muito pano para a manga. Percebam que Pierre, não copia o texto do Cervantes, ele tenta tocar, outra vez, o mesmo mistério, alguns séculos depois. É um trabalho quase impossível e é totalmente quixotesco... inútil, afinal de contas o livro já existia. Mas aí entramos em contato também com Platão e seu mundo das ideias. Talvez o Quixote perfeito, se é que pode haver um melhor, esteja lá, repousando em algum lugar, em estado de dicionário, basta alguém que saiba tocar para alcançá-lo. Tal discussão é extremamente pertinente num tempo em que a inspiração vem sendo, constantemente, massacrada e o trabalho do artista vem sendo comparado com qualquer outro trabalho, que não exija coisa alguma, além do esforço. Sou de posição contrária, acredito que o artista é um predestinado, quase que um xamã. Sei que a Arte também é feita de um trabalho árduo e racional. O problema é que a maioria das pessoas, hoje, acredita que só o trabalho árduo e racional construa a Arte, e não é isso. A Arte é feita de uma mistura de racional e irracional. De consciente e inconsciente. De Apolo e Dionísio. Portanto, meu caro cabotino, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Beleza, chega de Borges.
            O homem que escreveu Sobre heroes y tumbas e El túnel parece, ele mesmo, uma de suas personagens obscuras, enigmáticas e monomaníacas. Sábato foi um cientista, mas, num determinado momento, percebeu que a ciência não era capaz de explicar a coisa toda. Deixou-a de lado. Partiu com todas as forças para a pintura. Pintou. Pinta. Ainda faltava, ainda falta alguma coisa: tentou a ficção. A impressão que tenho, quando leio seus textos, é a seguinte: um cientista, perdido num pântano, numa noite sem lua, procurando algo que nem ele mesmo sabe o que é. Sábato parece não conhecer suas personagens, elas quase que conseguem viver independentes dele. Mesmo assim, ele as segue por vários cenários. Acredito ser esta a grande força de seus livros: as personagens, principalmente as femininas. É evidente que em  Sobre heroes y tumbas ele tentou um romance completo. Onde pudesse retratar o particular e o universal. É evidente também, que lá estão experiências literárias importantes, como a narrativa fragmentária, a mudança de foco narrativo e os tempos superpostos e colados, como se as personagens, literárias e históricas, fossem unidas pelos mesmos sentimentos, mas em épocas e mundos distintos. Nada disso, entretanto, se compara à força ficcional, ou real... sei lá, de personagens como Alejandra e Fernando Vidal Olmos. Quanto a esta personagem feminina, é necessário deixar registrado aqui, como um à parte, que eu nunca vi um nome se encaixar e traduzir tão bem uma personagem: Alejandra é Alejandra. Bola pra frente.
            El túnel, comparado com Sobre heroes, é um livro menor em número de páginas, mas é igualmente, uma história de beleza incomensurável. O eixo da narrativa também é a obsessão, como quase tudo o que o autor escreveu. Sou louco por esta novela, ou romance, entretanto não vou me aprofundar em qualquer questão referente a ela. Os que necessitarem de mais informações, procurem pela resenha do meu xará, Daniel Lopes.
            Para quem deseja ter um primeiro contato com a obra de Sábato, acredito ser El túnel, o texto ideal. Aos já familiarizados com a linguagem do autor, sugiro Abbadón, el exterminador, dentre seus três livros de ficção, será este, quiçá, seu texto mais hermético. Com isto, passemos a Cortázar. Mais precisamente para um direto de direita chamado Las babas del diablo.
            Certa vez Júlio Cortázar, ele mesmo, assim como eu, um grande admirador de boxe, disse que, enquanto o romance era uma luta ganha por pontos, o conto devia ser como uma luta ganha por nocaute. Sejamos, pois, nocauteados por Las babas del diablo.
            Mas, antes de travarmos tal batalha, é necessário preparar o cenário. Determinados textos fazem-me agir, e espero que isto contamine também você leitor, como um adolescente. Las babas é um destes casos. Toda vez que tenciono relê-lo, vou preparando o terreno alguns dias antes. Começo ouvindo sons tenebrosos do Black Sabbath e sigo deixando minha alma perambular pelos terrenos de água parada dos Doors. (A metáfora dos Doors foi boa, não foi não?)
            Sempre que possível, corro, como outro passo de um mesmo ritual, atrás do Blow up do Antonioni, filme que, a meu ver e no ver de muita gente, tem muito em comum com o conto. Só depois de tudo isto, encaro a narrativa. Está ansioso? Calma, leitor, que a luta já vai começar. Soltem os escorpiões.
            Las babas del diablo começa e termina como uma aula de literatura. A princípio, o narrador trata da impossibilidade de se narrar algo. Questiona a dificuldade de escolher entre uma narrativa em primeira, segunda, ou terceira pessoa, tanto do singular, quanto do plural. “Si se pudiera decir: yo vieron subir la luna, o: nos me duele el fondo de los ojos, y sobre todo así: tu la mujer rubia eram las nubes que siguen corriendo delante de mis tus sus nuestros vuestros rostros. Qué diablos.” Por fim, o narrador acaba optando por uma mescla entre primeira e terceira pessoa.
            Resolvida a questão do narrador, passemos à mistura produzida entre tempo e espaço na narrativa. Liguem-se no período: “Uno baja cinco pisos y ya está em el domingo”. O cara desce de seu apartamento até o térreo e já está em outro dia! É, ou não é terrível e belo?
            A maneira como o enredo é construído, é outro aspecto impressionante do conto. Roberto Michel, um tradutor e fotógrafo, num dia qualquer, tirou foto de um casal numa praça erma de Paris. A mulher que compõe o casal é mais velha que o rapaz, ele deve ter no máximo quinze anos. Todavia, há também alguém mais na cena, um homem, cuja face está coberta de um pó estranho que lhe esconde as feições. Este ser misterioso também aguarda o desenlace da história, dentro de um carro negro. Não conto mais nada... vale à pena ir atrás.
            A professora Heloísa da Costa Milton, da UNESP de Assis, certa vez me disse que é imperdoável o uso de alguns adjetivos num texto crítico. Bem... não sou crítico: Cortázar é foda!
            Outro lance que não poderíamos deixar à margem, é a maneira como a trama é construída: aos poucos, como se o narrador estivesse estudando o leitor, da mesma forma que um boxeador estuda o adversário, dentro do quadrilátero. Parece-me que Roberto Michel vai gingando com as pernas da palavra, soltando apenas alguns golpes curtos. Sem pressa, o texto vai minando a defesa do leitor e, no final, vem a pancada e o nocaute.
            Como já disse antes, seria interessantíssimo produzir um estudo, que se aprofundasse na obra de Borges, Sábato e Cortázar, mas aqui não é o lugar e eu tampouco tenho paciência para isto. Por enquanto é só. Todos os idiomas repousam nas bibliotecas. E o dicionário é o livro definitivo de qualquer língua.