16 de set. de 2010

Manual do isqueiro zen

Por Mauro Siqueira


Começou simples, eu estava no ônibus quase fazendo o mesmo que a jovem na minha frente fazia: cochilando num estado de abandono com a cabeça encostada na janela. Era meio-dia e o trânsito sempre ruim nas horas de almoço trazia a lentidão necessária para uma siesta. Alguém levantou perto de mim, e acho que foi isso que não me fez dormir. Nem vi o rosto da pessoa, apenas senti o vulto pelo canto do meu olho passar, olhei naturalmente para o lado, para o banco já vazio, nele um isqueiro prateado. Não tive a reação de chamar pelo seu dono ou dona, num automatismo e a sensação de estar sendo vigiado, olhei para os lados – ninguém dando a mínima, o trocador de cabeça dormindo com a cabeça baixa... eu ainda fiquei olhando o isqueiro mexer e dançar no assento fundo e cinza do banco do ônibus, vibrando por conta da movimentação, antes de me mudar de lugar e pegá-lo na mão.



Era um isqueiro pesado, aço escovado, tinha um desenho num dos lados – parecia uma miniatura de alguma coisa budista, não sei, era essa a impressão que me passava; um monge meditando e de sua cabeça saia luzes vermelhas e amarelas em várias direções, formando a moldura do desenho, era diferente. Debaixo o nome da marca: zippo. Quanto será que valeria? Era uma marca famosa... Fiquei brincando com o isqueiro e seu peso, abrindo a tampa e fechando, abrindo e fechando, clic!..., clic!..., clic!..., clic! Me dei conta de que naquela altura da vida eu nunca fumara um cigarro, era até curioso, cresci numa época em que fumar era culturalmente aceito. As estrelas de Hollywood fumavam, meus pais fumavam, minha professora do primário provavelmente fumava... “Ei, amigo: tem um cigarro?” – demorei a perceber que era comigo, por ser nova aquela frase para mim. “Não, não... tenho não.” Era menina que cochilava – devia ter acordado como os clics-clics. Ela ficou sem entender então porque de eu ter um isqueiro, eu só consegui dizer a única coisa que faria razão naquele momento: “E que eu coleciono...” Ela deu um muxoxo e se virou mais uma vez para a janela e o vidro e meio que instantaneamente voltou a dormir. Não gosto que me deem muxoxos! Desde que era professor e pai, ai de quem o fizesse: era suspensão ou castigo! “O que você fez?”, perguntei já pegando a maluca pelo braço, “O QUE VOCÊ FEZ?!”, disse gritando para que ela acordasse de uma vez, ela estava atônita; todos os poucos no ônibus estavam. Fodam-se. Eu queria que ela se desculpasse que pedisse perdão pelo gesto mal-educado e inadmissível. “Vamos, diga, peça desculpas!”, “Mas o que eu fiz?! Eu só te perdi um cigarro cara, tá louco! Socorro! Motoristaa!”. O trocador, como ela, parecem que só acordam no susto. Mas não deixei ele sair do alto da sua cadeirinha: levei a mão a cintura no clássico gesto “tenho uma arma, seu babaca!”. É lógico, não tinha arma alguma, apenas o estojo dos meus óculos escuros, mas hoje o pavor social coletivo é tão grave que todos jurariam que eu carregava uma pistola. O pânico só fez aumentar – e daí? O controle era meu.

Estávamos numa pista movimentada e engarrafada, o ônibus parado só piorou o quadro... mas eu me sentia o mais sozinho dos homens. Queria dizer que não entendi os porquês de fazer o que fazia, mas no fundo do meu ser: EU SABIA. Eu estava farto. Simplesmente cansado de atuar num palco que não era meu, um texto artificial que não fora escrito por mim ou para mim. Desde da manhã à noite eu interpretava. Não entendia quais as sucessões de (acertos) (erros) cometidos por mim me levaram até ali... Tudo muito batido, não? Quantas vezes (fezes) vocês já não esbarram (espalharam) por ai como essa? Variações sobre o mesmo tema. Mais do mesmo... Eu sei, também penso assim e estranhamente ali, num ônibus posto em pânico por mim, pessoas assustadas que certamente era tão atores e atrizes quanto eu, pensavam em uníssono que “Se eu sair dessa mudarei a minha vida.” Essa era a chama que eu vi incendiar em cada íris daquele coletivo. E eu que provoquei aquilo... clic. O isqueiro acendeu e eu ascendi de alguma forma, aconteceu de forma simples: olhando para o pequeno ícone no isqueiro Zippo, essa era a marca escrita no fundo dele, tive a vaga ideia de me reconhecer no gordinho sentado e os raios saídos da sua cabeça eram tão reais... Um estranho isqueiro zen, me dizendo o que fazer como num manual muito particular e esperando só um perdido como eu para entender sua mensagem e então, como num clarão, veio a minha ideia aquele protesto feito por um monge tibetando nos anos 60, uma das capas mais famosas da Life e a capa do primeiro CD do Rage Against The Machine. Zack de La Rocha tinha razão: “Anger is a gift”.



“Quem esta na chuva é para se molhar não é?”, pensei comigo; e para falar a verdade eu já não estava mais aí para nada, aquele isqueiro como raios saídos do monge me deu uma direção e um sentido, um caminho solitário para mim. Eu não tinha muito mais tempo, gritei para que todos descessem, inclusive a cochilona. Eles pareceram não acreditar e demoraram a reagir e quase que num balé de nado sincronizado, aquelas pessoas, até instantes atrás letárgicas, ganharam 'anima' e feito insetos tentavam sair por onde era possível. Foi bom ficar sozinho. Eu e meu isqueiro de marca, com raios vermelhos e amarelos saindo da cabeça do monge zen. Fiz como o desenho e me sentei em posição de meditação. Clic!... clic!... era mântrico aquele som do isqueiro e agora eu entendia o desenho... clic, ooom.., clic, ooommm, clic, oommm... clic. Não era uma chama azulada como dos isqueiros comuns, o meu era de marca. (Acho que tinha até cheiro...). Com ele ainda queimando o devolvi ao banco em que o encontrei, a chama rapidamente beijou o lugar e num piscar de olhos lambeu os bancos da frente em fogo; detrás, as borrachas e tiras da janela pingavam o plástico retorcido. Eu fui para o fundo do ônibus, esperando a minha vez de ser lambido também, no chão que já ia quente, me sentei feito o monge de cabeça de raios e em vez do ommm eu repeti um novo mantra: clic.