6 de set. de 2010

A Balada Imprudente de Alice e Alex: 8 e ¹/² - ep.05 [parte 01]

Por Mauro Siqueira

“Alfredo, va fan cullo!”
Totó – Cinema Paradiso



Naquela noite eu não dormi bem.
Causa? Não foi por medo ou insegurança. Eu era pura excitação, eu era pura energia. O que ouvi sobre o zelador do tal prédio fez com que eu voasse em cenas, imagens, visões de como tudo se dera. Pode um coração parar e você não morrer? Quando sai do meu estado de perplexidade, quase apoplexia, senti a necessidade de correr. Peguei a minha bicicleta e pedalei pelo bairro até sentir o meu coração bater e vibrar por clemência nas batatas da minha perna. Só voltei à noitinha... Minha mãe no portão com uma cara... saiu barato o sumiço, “Nada de ‘Esquadrão Classe A’ pra você hoje”, por sorte fiquei só de castigo – ela também entendia. Mas não me importei muito, afinal era um episódio reprisado mesmo. Fui para o quarto e abri o caderno azul – eu lembro vividamente daquela noite em especial – respirei fundo. “O que é isso? Dever de casa?”, perguntou a minha irmã por perguntar ao entrar no quarto e pegar o seu walkman. “É.” – e escrevi.

Ao menos tentei. Eu perdi a conta de quantas folhas foram arremessadas fora, nunca desperdicei tantas delas; mudei de caneta; usei lápis. Lapiseira. Hidrocor. Nada! Troquei de lugar, mudei objetos de posição, ouvi música, tentei jeitos de começar, comi, bebi água. Nada! Certo de que não conseguiria escrever o que imaginava querer – eu não sabia representar, transpor os acontecidos em palavras: eram falhas, gastas, mancas; inúteis. Elas despencavam da caneta para o papel e só sujavam as linhas, mas era algo que eu precisava (tentar) fazer, tirar de mim. Foi um martírio. Não sei quando dormi, a desistência involuntária, só me dei conta na madrugada quando despertei, meu pescoço doía, estava com sede. Indo até a cozinha, vi a luz azulada da tevê, meu tio roncava. No Corujão um filme italiano.[1]

***

– Então, bobalhão, tem certeza que o caminho é esse?
– Claro que sim!
– Como? Se estávamos presos num porta-malas...
– Alice, Alice, Alice... sabe aquele caminhão que matou o coelho? Você leu a lateral dele?
– Que caminhão?
– hmm... esquece, então. Só saiba que além de mal motorista ele tem na sua carga isso.
– Fubá?
– É!! E ele tá soltando desde sei lá onde, olha... E tá fazendo um caminho pra gente, uma caminho que nos paralelepípedos parecem tijolos amarelos, como você falou!
– Não falei bem isso, Alex...
– Mas falou...
– Alex: foda-se.

Alice e Alex caminhavam há horas, pareciam que nunca iam chegar. Apesar de todo cansaço e da má aparência não demonstravam um ao outro as sua preocupações, ao menos Alex, pois a irritação de Alice era evidente e isto, um sinal de contrariedade. Do alto do tal bairro Alto, ou o Mirante, via-se a cidade inteira, mas qual cidade? Eles tinham dúvidas se os caminhos do opalão os levaram para fora dos limites do município. Estavam quase convencidos de que estavam num cidade vizinha. Margeando a estrada, a metrópole. Quase um organismo, Alice definia assim, podia sentir dali a sua vida e força – definitivamente, o interior não é o seu lugar –, ela queria estar ali imediatamente. No céu daquela cidade uma camada amarelada a cobria e a linha do horizonte, distraída pela sua sujeira, escondia dos dois peregrinos sua suposta beleza. Alex queria conversar, Alice não. A menina andava à frente. Os poucos veículos que passaram na estrada não atenderam os polegares eretos pedintes de carona, nem mesmo o corpo bonito de Alice prestou para isso, talvez as tatuagens tenham assustado, mas quem se assusta com tatuagens hoje? Ao menos confirmaram a suspeita: não estavam nem perto de casa, entre eles e o seu lugar, duas cidades: uma com nome índio, outra como nome da santa. Assim que tivessem chance roubariam um carro, Alice dirigia muito bem (segundo ela mesma). O cansaço insuportável, até mesmo Alex, que vinha mantendo um bom humor quase monástico não falava mais nada.

– Chega, Alice: nós vamos morrer! Eu não aguento mais andar...
– Então voe, idiota... É a melhor ideia que eu posso ter.
– Vamos parar, vamos pegar carona...
– Ninguém quer para a gente! Olhe para nós? O nosso estado. Você pararia?
– Eu?... Pararia sim.
– Pra puta que pariu que pararia! Mas você tem razão, chega de andar.
– Vamos mesmo voar, então?
– Melhor: nós vamos roubar um carro...

A desconcentração dos dois era tamanha – que nem mesmo o sangue nas roupas recém tomadas emprestas incomodavam –, mal perceberam que de repente o terreno nivelara e que já não era possível observar a grande cidade em sua magnitude e totalidade. O dia, no auge do seu calor. Talvez tenha sido a desolação da cidadezinha com o que se propunha aquele estabelecimento que a fez dirigir para lá. No letreiro do cinema drive-in, letras garrafais anunciavam: “Festival Fellini” – Hoje: “Amarcord”, “8½” e “La nave va”.

Alex, lendo na expressão da garota, adiantou-se:

– A sua é salgada ou doce?
– Doce.

Já acordando, vendo sobre a mesa o caderno azul fechado com a minha caneta feito marca-páginas em que parei; as rasuras, os rabiscos marcando em Bic-azul a minha derrota. “Foi seu pai que te levou pra cama. Te achou no tapete da sala. Seu tio vai ouvir umas também, dormiu com a tevê ligada... de novo! A conta, pela hora da morte e ele desperdiçando luz...” “Mais cinco minutinhos...” “Não, levanta logo... Ah, seu pai também gravou o seriado pra você... ao menos ele disse que dessa vez ele conseguiu.”, minha mãe falou numa incredulidade.
Segundas-feiras sempre são estranhas, mas aquela em especial parecia conter em si muitas segundas-feiras que viria a ter. Com doses a mais de frustração... nem sentira o Domingo passar e a segunda surgia com um peso que eu, com catorze anos não suportava, Deus! Minha mãe continuava a falar, eu pouco a pouco acordando, pensando no que não consegui reter no papel sobre os acontecidos e que filme doido foi aquele? Que peitos eram aqueles? Enormes! E aquele pavão? Qual o sentido daquele pavão?! Afinal, quantos filmes eu vi ontem? Eu já estava perdido com dez minutos de despertar.
No caminho da escola, a banca de jornais, só pensava nas histórias de delinquência que ganhava cada vez mais corpo nos noticiários pendurados, a tal da Claudia Vargas vinha irritando a polícia, demonstrando ser bem mais sucedida que eles nas pistas deixadas. Depois do zelador canibalizado, ela seguiu uma “dica anônima”. A danada achou um velho opala próximo dos limites fronteiriços de Santa Letícia, quase a duas cidades daqui. Para surpresa de todos, um homem fora encontrado dentro de um velho Opala... agora não lembro se vivo ou morto, apenas que era um grande contrabandista chinês. Seguindo o caminho de volta, talvez o pior. Cláudia Vargas e a sua equipe – sim ela ganhara uma equipe – encontraram um casal de amigas, gravemente feridas. Uma foi incapaz de dizer qualquer coisa – teve a língua arrancada. A outra, nos dedos restantes das mãos, e estranhando a voz metálica que saía dela mesma, por um tubo na traqueia disse: “Foram dois. Uma garota com tatuagens e um garoto de lábio leporino”.
(Num cinema muito longe dali e muito antes dessas informações cobrirem os jornais, Alice e Alex assistiam a um enorme rinoceronte ser transportado num bote salva-vidas).


[1] Essa é a história do que não foi história das Notas do Caderno Azul.


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