8 de set. de 2010

Plenitude

Por Brontops Baruq
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Naquela manhã, entretanto, viram surgir logo antes da arrebentação a silhueta do homem e de sua montaria. As ondas os varriam para o raso. As pessoas na praia estancaram, interrompendo a coleta de conchas mortas. Logo se constatou ser um cavaleiro medieval.
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Aproximaram-se daqueles dois com curiosidade de mulher que cerca o jangadeiro que retorna do mar. Ao nascer do sol, é costume dos nativos caminhar à beira-mar com pequenos baldes plásticos e cajados com os quais futucam a tralha trazida na maré: tábuas podres cobertas de craca; latas, copos descartáveis e guimbas; tocos de remos e pedaços rasgados de redes; estrelas, peixes e pinguins mortos; às vezes, um pequeno kraken preto, semidevorado por gaivotas e sereias.
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A montaria estava exaurida, rodara mais de um mundo para chegar àquele litoral: vomitava água como se alguém torcesse suas tripas encharcadas. Testemunhas presenciaram algas e camarões trançados na crina e nos cabelos do rabo. Mesmo assim, indiferente à exaustão do animal, o cavaleiro somente apeou sobre a areia, no limite final do alcance das ondas, onde ficam os furos das tocas dos tatuíras. Cada movimento do cavaleiro derramava água das articulações da armadura. Quando este ergueu a viseira do elmo, um pequeno siri escapuliu do esconderijo. O homem voltou seu rosto para o mar, inspirou fundo e feliz os raios daquele sol. As demais pessoas ao redor sorriram, calcularam que fazia muito tempo que ficara submerso, talvez tivesse se esquecido do dia.
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Rompendo a passividade dos nativos, um senhor já de alguma idade adiantou-se e, com o cajado, tocou naquele estranho. O cavaleiro desembainhou a espada e fez o aço da lâmina roçar na papada do pescoço do velho. A roda dos curiosos revoou, uns correram, outros deixaram os baldes e as conchas na areia. O velho respondeu à única questão feita pelo cavaleiro.
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- Sim, aqui é Cocanha.
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Feito um escafandrista, o cavaleiro caminhou pesadamente sobre a areia fofa, arrastando atrás de si a montaria. O esforço era grande, aconselhava o descanso. Mas resistiu para rumar ao interior daquela terra, onde avenidas de asfalto serviam de fosso para as torres de alturas diferentes que compunham a muralha irregular daquela cidadela.
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O animal resfolegou até alcançar o calçadão. Os cascos estalaram no mosaico de pedras recortadas. O cavaleiro maravilhou-se com o chiado do vento nas palmas das palmeiras, a disposição de janelas como em um tabuleiro deixado de lado, a oferta de javali assado e água de coco nos quiosques, o fato peculiar das carruagens se autolocomoverem. Observou que diversas pessoas estavam nuas, em aparente desvergonha. Todavia, a maioria delas corria, acreditou que haveria algum perigo em curso, que fazia com que fugissem daquele jeito.
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Apesar do escudo, peitoral, cota de malha, gorjal, sobrepeliz, bacinete, camal, bacinete, o cavaleiro parecia ser mais leve que os usuais frequentadores da praia, com dobras de gordura a transbordar sobre sungas, bermudas, cangas e biquínis. Seu aspecto atraía a atenção dos demais nativos na rua. Outros se ajuntaram à romaria curiosa. Inicialmente acompanhavam os estrangeiros (homem e animal) e depois bloquearam-lhes o caminho. Crianças puxavam-lhe os restos puídos do mantelete, mulheres apontavam rindo a espada embainhada, os homens gargalhavam e se empurravam na tentativa de tocá-lo, e, neste momento, o cavaleiro baixou sua viseira.
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A turba continuou a apontar-lhe os celulares, gravando suas imagens como balestras apontadas. Nem mesmo depois da espada ter cortado um ou dois, os nativos ignoravam aqueles caídos e insistiam em um frenesi de hienas cercando moribundo. Só depois de montar no cavalo e abrir caminho entre a multidão e cruzar a avenida rumo às vielas da cidadela, perceberam os corpos flácidos e nus em poças de sangue e tecido adiposo.
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Pediu orientação a um sujeito que lhe apontou o leste. Em seu país, normalmente a igreja ou o castelo seria o lugar mais alto de toda a cidade. Naquela ilha, entretanto, as torres eram tão altas que impediam que se enxergasse muito longe. Os próprios pássaros precisaram aprender a se orientar pelos becos e ruas, pois eles também estavam confinados pelas paredes daqueles prédios. As carruagens grasnavam para os estrangeiros, contínua e violentamente, enervando o cavalo.
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Encontrou uma praça aberta como uma clareira queimada naquele jardim de pedra, e no meio da praça, entre as sombras das révoas dos pombos e oculta entre alamedas de mangueiras, havia uma catedral de pedras brancas decorada com pequenas cagadas que derretiam das paredes, pequena e inapropriada para aquela terra de maravilhas.
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O cavaleiro notou uma cerca de lanças ao redor da Igreja, um tanto frágil para servir como defesa. Amarrou seu animal ali, indiferente à curiosidade de pipoqueiros, vendedores de terços e medalhinhas. Adentrou na nave e deu de cara com o quadro de avisos e uma cortiça espetada com cartões de apresentação. Não havia celebração no momento, um grupo de senhoras orava em voz alta em um dos braços da catedral. Ajoelhou-se perante o altar e agradeceu.
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Um padre se aproximou daquela estranha figura fétida; com tapinhas em suas ombreiras, interrompeu a prece. Perguntou se tinha autorização do bispo para fazer filmagens ali dentro e solicitou seus documentos. O cavaleiro respondeu à maneira de sua terra. Quis saber de Cocanha, dos alimentos voadores, dos rios de vinho e mel, das mulheres virgens a verter leite, do trabalho que não existia, de onde estava a alegria naquela terra de prazeres, de onde vinha o sentido. O padre, se entendeu, ignorou suas palavras, estava muito nervoso, afirmava que não se podia fazer dinheiro em nome da Santa Igreja, que o templo era um lugar de adoração e não de heresias. Fez aquele homem se erguer, sem disfarçar sua repugnância pela exalação de peixe morto do viajante. O empurrou em direção à saída, sob os olhares dos pedintes na escadaria.
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O cavaleiro percebeu que a cerca não estava lá para os inimigos da cidadela mas para os fiéis.
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Veio a noite, o cavaleiro acendeu uma fogueira sob os arcos de um viaduto. Dividiu sua ceia com a montaria; restos de hambúrguer e pizzas mofadas em um saco preto de lixo. Chovia e as águas desciam da pista sobre sua cabeça em uma torrente, fazendo nascer uma cascata. Logo se reuniram outros, e o homem sentiu-se mais à vontade entre aqueles humildes do que entre os nativos da praia. Eram mais magros que aqueles da manhã e pareciam tão famintos quanto aqueles vilões de sua terra natal. Eram quase todos velhos bêbados, como zumbis ou crianças ligeiras, como duendes. Acendiam seus cachimbos e dormitavam sonhos quentes de olhos entreabertos. Sabia-se que em Cocanha havia uma nascente que faria os anciões recobrarem a juventude. Ali, no meio dos pivetes e dos bebuns, pensou se a corredeira daquela sarjeta iluminada pelos faróis dos carros seria a origem daquela história.
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Aquela era mesmo Cocanha, a terra da fartura. Aquela matilha faminta viciada sifilítica era mais sadia e robusta que a canalha de sua casa. Dormiam rodeados pelo ouro, que de tanto brilhar irrompia pelas janelas dos apartamentos. Sim, estamos em Cocanha. Estamos no paraíso. Mas não existe plenitude.
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Brontops Baruq tem ascendente em sagitário, é míope, tem duas orelhas. Casou-se. Tem filhos. Escritor de Segunda. Publicou contos aqui e ali, entre outros lugares: Anno Domini (Andross), Alterego e Cartas do Fim do Mundo (Terracota). Participa do Projeto Portal (http://projeto-portal.blogspot.com/). Bloga em http://brontops.blogspot.com/ Mora em São Paulo nos meses pares.