12 de jan. de 2010

Seis microcontos, do livro inédito 'Breu'

Por Geraldo Lima

O inesperado

Fazia tempo que não nos víamos. Ela tentou ainda correr o ferrolho. Inútil. Com a ponta do sapato impedi que fechasse a porta. Recuou aterrada, desintegrada pelo medo. Entrei. Desliguei a luz e avancei dentro do breu.

Por trás daquele sorriso

De dentro do sorriso saltaram os ferrinhos comprimindo os dentes. Tarde demais. Ferro contra ferro, língua contra língua, dente contra dente. Saliva, murmúrios. Depois, o abismo, a voz de Deus cada vez mais distante.

Sanctus

Deus não aprovaria isso, essa carne devassa, esse sexo exposto, faminto sempre. Só a morte lhe trará a verdadeira satisfação. Eu curo os doentes, amanso os loucos, dou descanso aos desenganados. Deus anda comigo pelos caminhos mais turvos. E agora estamos aqui, junto ao seu leito enfermo, o coração repleto de amor e piedade.

Missão

Quando adentrei o recinto, havia ainda uma nesguinha de Deus em mim. Confesso: quase senti piedade, remorso pelo que ia fazer. Quase, quase. Mas de repente as vistas turvaram, adveio uma noite medonha. O restinho de luz finou de vez. Agora, só o tumulto de gritos, clamor e desespero dentro do breu.

Oh!

Tentou ainda dizer algo como Deus está... Cortei com um beijo seco, quase violento. Deixa Deus fora disso, Ele é só remorso, temor... Quis retrucar, mas tapei-lhe a boca de novo: um beijo ávido, sufocante. Gemeu, como se algo morresse dentro dela. Desliguei então a luz para que ela não visse, não pensasse, não buscasse a face de Deus em meio aos estertores.

Macega

A gente avançou no meio do escuro, rumo ao lugar de onde vieram os gritos. Meu pai indo adiante, só coragem, medo nem de Deus nem do diabo. Eu indo bem no meio, dominado pelo terror. Por que estávamos indo até lá? Para a memória carregar pra sempre o charco de sangue, a ruína do corpo?
Meu pai avançava, sem fome de perguntas, senhor do nada.
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