1 de nov. de 2025

Dois filmes brasileiros para você (não) assistir, se for brasileiro

Por Sinvaldo Júnior 

Toda vez que assisto a um filme brasileiro ou leio um livro de autor nacional de que gosto, surge em mim uma revolta (in)explicável: por que a sociedade brasileira, com sua cultura e artes tão diversas, valoriza tão pouco sua própria produção? Que síndrome é essa que a faz consumir majoritariamente obras estrangeiras? São perguntas antigas e antiquadas - eu sei. 

Sim, e também sei que Ainda estou aqui fez uma baita sucesso e que Itamar Vieira Júnior é um best seller etc. e tal, mas esses casos, a meu ver, além de serem exceções, pouco contribuem para divulgar o cinema e a literatura brasileira em seu próprio país. Em suas entrevistas, quantos autores nacionais, famosos, antigos ou contemporâneos, o escritor Itamar Vieira Júnior ajuda a divulgar? Como formador de opinião, com certeza ele tem esse poder. Quantos escritores se tornaram conhecidos do público brasileiro na esteira do seu sucesso? Você já sabe a resposta, leitor. Nenhunzinho. Quanto ao cinema, saiba que entre os 20 filmes com maior bilheteria no Brasil em 2025, apenas um é brasileiro: Chico Bento e a Goiabeira Maraviósa. 

Sou pesquisador de literatura brasileira; vou ao cinema para assistir, prioritariamente, filmes brasileiros, muitos dos quais assisti na sala vazia… Também priorizo, em minhas playlists dos streamings, filmes nacionais. Desde criança, devo confessar, sou apaixonado por cinema brasileiro, e o motivo dessa paixão - creio - foi ter assistido ao filme Pixote, a lei do mais fraco (1981) num desses canais abertos, o único acesso à TV, na década de 1990, para uma família pobre. Desde então - e até o cinema brasileiro começar a copiar os modelos hollywoodianos - eu acompanhei quase tudo que surgia de filme feito por aqui, por nós. Hoje - confesso - seleciono muitíssimo bem os filmes a que assisto, uma porque o cinema brasileiro - para o bem e para o mal - se difundiu em modelos que pouco parecem ser feitos no Brasil, e outra porque vivemos uma vida frenética que nos impedem de termos o lazer que queríamos ter. Não vou entrar nessas questões… 

Nos últimos dois dias, assisti a dois filmes nacionais disponíveis na Netflix, mas muito diferentes entre si: A frente fria que a chuva traz (2015), do famoso-desconhecido Neville d’Almeida, diretor de A dama da lotação (1978), Matou a família e foi ao cinema (1991) e Navalha na carne (1997), entre outros; e Meu sangue ferve por você (2023), direção de Paulo Machline, sobre um recorte da vida de Sidney Magal, o popular cantor que dispensa apresentação (será?).

A história de A frente fria que a chuva traz (2015) pode parecer absurda e inverossímil para quem desconhece a realidade brasileira e, mais especificamente, a realidade da cidade do Rio de Janeiro[i]: um grupo de jovens ricos aluga uma laje na favela do Vidigal e, durante um dia inteiro, interage entre si e com o dono da laje, um favelado preto (Gru), e, à noite, organiza uma festa regada a muita bebida, drogas e insinuações sexuais. Suas conversas são, em geral, superficiais, carregadas de preconceito, eivadas de termos chulos. Qualquer semelhança com a realidade, aqui, traduz a realidade. 

No entanto, uma personagem se destaca: Amsterdã, interpretada pela belíssima Bruna Linzmeyer, é uma moça pobre que se prostitui às vezes para comprar suas drogas, e frequenta um meio do qual não faz parte - aquele dos jovens burgueses - justamente para conseguir bebidas e drogas na faixa. Mas nada - nesse meio de pessoas endinheiradas - é de graça. Alguém deveria tê-la avisado. 

No início do filme, todos os personagens parecem muito superficiais e a situação, idem. Mas, à medida que a história avança, eles vão se complexificando, até culminar nas falas finais, emitidas por Amsterdã, cheias de rancor e ódio de classe - mas da classe baixa para a classe alta, o que no Brasil é muito mais justificável, se levarmos em conta sua história elitista, classicista e escravista. O rico não tem motivo nenhum para odiar os pobres, mas odeia; o pobre tem mil motivos para odiar os ricos, mas admira - essa é a história de uma sociedade que não se reconhece, pois seus indivíduos sempre se consideram acima do que de fato são. 

A frente fria que a chuva traz foi um fracasso em seu circuito comercial, e não poderia ser diferente: primeiro, não é um filme comercial; segundo, mesmo se tratando de um filme alternativo, não se apresenta como tal desde o início, misturando estética popular e autoral, trilha sonora popularesca e popular-elitista, personagens rasos e complexos, uma sala mista que confunde seu possível público-alvo; terceiro, porque não é um filme bom (o que não quer dizer que é um filme ruim). Destacam-se, nele, a atuação de alguns atores e sua fotografia, que privilegia o belo no feio. Sim, a favela é feia e não venceu. Está mais perdida do que nunca, diria.

Meu sangue ferve por você (2023), por outro lado, é um filme que desde o início mostra a que veio: quer ser popular e o é. Começa com Sidney Magal, o protagonista, em seu camarim antes de entrar no palco para realizar um show em Salvador (BA), em 1979. Trata-se (e o recado é explícito no início) de uma “fábula magalesca e qualquer semelhança com a realidade é uma coincidência cósmica, obra do destino”. Ou seja, o aviso está dado: embora inspirado em uma história real (a história de amor do cantor famoso), não acredite em tudo que vê, porque muita coisa ali foi feita para encantar o telespectador, e não para ser fiel à realidade retratada. 

A direção de arte do filme é seu ponto alto: o figurino, a maquiagem, a cenografia, os elementos visuais em geral, contribuem para nos colocar naquele universo - da música popular do final dos anos 1970; da cidade de Salvador à época - e, em consequência, para nos colocar dentro da história do filme. O que pode parecer brega para a Geração Z e Y, como a forma como o cantor se vestia (roupas extravagantes, coloridas) ou se portava (gestos ensaiados, afeminados), parece a mim - alguém na casa dos 40 que nasceu no final da Geração Millennials e, portanto, não viveu essa época - extremamente avançado/moderno/corajoso para a época. Éramos menos conservadores? Éramos mais tolerantes? Aceitávamos mais as extravagâncias das pessoas (ou somente as dos artistas)? 

São questões que o filme não levanta, mas que me suscitou enquanto eu o assistia. Na verdade, é um filme de encontro, de amor. Trata-se da história de como Sidney Magal (hoje com 75 anos) conheceu sua atual esposa, Magali. Os personagens são interessantes, engraçados e, embora extravagantes alguns (a mãe de Magali, Graça, interpretada por Emanuelle Araújo; o primo de Magali, Renan, interpretado por Sidney Santiago; o empresário de Magal, Jean Pierre, interpretado por Caco Ciocler), não parecem forçados ou caricatos. Os diálogos são naturais e combinam - eu acho - com a forma como as pessoas falavam em Salvador nas décadas de 1970/1980, e isso se dá pelas ótimas atuações dos atores, em especial das atrizes. É um filme leve, romântico - um ótimo entretenimento de 1 hora e 37 minutos. 

Toda cinebiografia é um recorte. Ou seja, toda ficção, mesmo baseada em fatos reais, é mentirosa. Ok? Não vem ao caso saber o que é ou não é verdade no filme - isso não importa. Fazer um filme hoje, no Brasil, sobre uma história passada 45 anos atrás já é, em si, digno de nota: não é nada fácil - qualquer plano aberto pode colocar tudo a perder, pois mostrar mais prédios que de fato existiam em 1979, mesmo se tratando de uma cidade grande como Salvador, pode deixar o telespectador mais cricrítico de orelha em pé. Acontece às vezes? Acontece. Mas isso não compromete o filme. Como disse, produzir um filme histórico - e no interior de uma cinebiografia/comédia romântica - não é para qualquer um. 

Para agradar a uma sociedade moralista, como a atual, independente se à esquerda ou à direita, o diretor precisou fazer alguns ajustes, um dos quais foi colocar uma atriz mais velha (Giovana Cordeiro) do que seu par romântico masculino (Filipe Bragança), o que difere da realidade retratada (Magali tinha 16 anos; Sidney Magal, 29), porque é difícil explicar para uma geração moralista e preguiçosa, que não tem (nem quer ter) conhecimentos históricos/geracionais, que à época de nossos pais/avós/bisavós, as mulheres começavam a se relacionar ou se casavam bem mais novas e, em geral, com homens mais velhos. 

Mas vamos focar nos gêneros: Meu sangue ferve por você é, em essência, uma cinebiografia, mas é uma cinebiografia de um cantor, motivo que fez o diretor fazer dele também um musical. Além disso, é um filme romântico e uma comédia. Havia muitos motivos para ser melodramático, brega ou superficial. Podia não funcionar, mas funcionou: cumpriu com todos os propósitos dos gêneros. Caso se disponha, leitor-espectador, irá se entreter e se divertir ao assisti-lo. Diferentemente de A frente fria que a chuva traz (2015), que quis ser algo que não conseguiu, Meu sangue ferve por você (2023) quis ser apenas aquilo que conseguia ser: um bom filme. 

Voltemos às questões do início do texto: por que o telespectador brasileiro, mesmo com um cinema tão diverso que funciona para todos os gostos, prefere assistir a filmes majoritariamente estrangeiros? Sim, há uma explicação mercadológica que envolve marketing, muito marketing, e uma opção por modelos de histórias que fazem sucesso há anos, décadas, séculos. Mas muitos filmes brasileiros, sobretudo das últimas duas décadas, também obedecem a esses modelos, e mesmo assim não conseguem seu público. A explicação, a meu ver, simplista, dura, mas real, é: um complexo arraigado, profundo, de sempre achar - preconceituosamente, pois não dá a chance da dúvida - de que o estrangeiro é sempre melhor do que é brasileiro. Nem Freud explica. 

 

Sinvaldo Júnior é professor, pesquisador acadêmico e revisor de textos (Textifique Soluções em Textos). Possui graduação em Letras/Português, mestrado em Administração e doutorado em Estudos Literários. Atualmente cursa pós-doutorado, com pesquisa comparada entre literatura e cinema. Publicou diversas resenhas, artigos de opinião e artigos acadêmicos sobre leitura e literatura, com foco em obras e autores brasileiros. É pesquisador/admirador de Carlos Drummond de Andrade, Charles Chaplin e Campos de Carvalho. Mora em Uberlândia-MG.



[i] Não depois da chacina que matou 119 pessoas praticada pelo Estado no dia 28 de outubro. Um absurdo normalizado no meio de vários absurdos normalizados que ocorrem na cidade maravilhosíssima.