6 de nov. de 2025

Cem anos de ‘A luva’, a revista que calçou uma época (1925 -1932)

 

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Em 15 de março do ano de 1925, começa a circular em Salvador a Revista A Luva, que possuía redação e oficinas localizadas na rua do Cabeça nº 18, centro da cidade. Idealizada por Severo José dos Anjos, esse periódico foi um marco na produção editorial baiana no período que se estendeu de 1925 a 1932, em que foram impressas suas 131 edições em periodicidade quinzenal. 

A Luva cativaria primeiramente um público consumidor interessado nas seções diversificadas e atraído pelas capas coloridas, pelas fotografias e pelas técnicas de ilustração, público esse ainda habituado a formas em preto e branco. Com o tempo, os leitores acompanhariam com interesse as crescentes altercações sobre a literatura modernista e a arte em geral. 

O periódico caracteriza-se, em sua fase inicial, como um ponto de transição, e mesmo que não assumisse explicitamente a aderência ao Modernismo, já deixava entrever, em sua produção, indícios de liberdade estilística e temática condizentes com o ideário moderno. Desta forma, ainda que se firmasse como uma “revista de variedades”, publicava também textos literários, ensaios, resenhas e críticas de arte, de grupos modernistas distintos, fornecendo-nos material suficiente para a análise das concepções estéticas e ideológicas daquele momento. 

Neste momento em que se completa cem anos da aparição de A Luva, cumpre ainda registrar dois outros aspectos que podemos abstrair do pensamento daqueles que nos precederam e que muito têm a nos dizer em nossos dias de 2025. Primeiro: qual a percepção na década de 20 do século passado sobre o estado do mundo e dos homens? A esse respeito levantamos uma pontinha do véu no texto “A Dúvida atual” (Ano I, nº 8, 30-06-1925), assinado por Carlos Chiacchio, e que transcrevemos na íntegra com a ortografia atualizada. 

“Atravessamos um nevoeiro. A alma contemporânea vive sob o domínio das apreensões. De cada lado um pesadume assalta-a. O assédio dos dissabores conturba-a a cada instante. É um hesitar sem fim. É um vacilar sem termo. Vivemos, pensamos, sofremos, numa contínua oscilação de pêndulo. É um labirinto que atravessamos. É a dúvida... Mas não é a dúvida filosófica, a criadora de sistemas. Não é a dúvida científica, a construtora de teorias. Não é a dúvida religiosa, agitadora de mistérios. Não é a dúvida interior, mãe dos despautérios. É a dúvida ignorante, manancial de erros. É a dúvida econômica, manipuladora da fraude. Os homens não se compreendem à luz franca do sol, mas se despedaçam no seio abscôndito da treva. O amor causa vergonha. O ódio é que imprime caráter. Se tu estendes com afeto o braço, para bem dizer. Logo te cortarão no pulso a mão da justiça. Porém, se levantas o pé com açoites epiléticos da fúria, então chovem flores na arena. Hinos aos combatentes do circo. Pedras aos louvaminheiros da paz. Mais vale o bloco imundo do lodo que se atira contra o adversário, do que o punhado de bençãos que se lança ao amigo. A declamação párvoa em vez do argumento sério. O espasmo rábico em lugar do princípio salutar. E se o espírito observador não degenera em certos temperamentos ao extremo nirvânico da resignação é que o desespero ainda lhe palpita no bojo num estado fervilhante da dúvida, que é sua melhor atitude diante das coisas e dos homens... Por quê? Porque tudo está sendo mais fácil à violência da força do que à naturalidade do direito. E revoltar-se é a lógica dos vencidos. Os nervos atingem essa tensão de quase loucura: a loucura da dúvida, de que nos falam os mestres da psicologia mórbida. Anda Hamlet as testilhas [disputas] com Pangloss. Mas não será possível um mundo melhor? Uma vida mais bela? Uma época mais feliz? Quem sabe, quem o poderá saber, sob esta pressão sombria da dúvida, a dúvida soturna que pesa como o tédio sobre a alma da gente? “Caminha” diz a esperança. Mas como é hesitante a ilusão duma esperança...” 

Um segundo aspecto: de que forma os homens daquela época viam as promessas de um futuro luminoso para a humanidade, embalados que estavam por perspectivas do progresso científico e tecnológico sem freios? A esse respeito leiamos o editorial da revista publicado no dia 15 de novembro de 1927.

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E hoje, o que nos resta é perguntarmo-nos perplexos em que ponto nos perdemos? Como afinal a realidade atual ainda conseguiu ser pior do que a imaginada há cem anos? Se por um lado, vivenciamos um desenvolvimento tecnológico sem precedentes na história humana, por outro, o sentido e a prática humanista definhou a níveis alarmantes.


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.