Por Ricardo Novais
Na gaveta de uma cômoda carcomida pelo tempo eu tiro umas coisas velhas. Um livro, uma carta amarelada, uma fotografia desbotada. O passado passeia pela validade de lembranças. Uma caixinha de música, uma caneta, um perfume. Sabe a sensação de saudade depois que se volta de alguma viagem, leitor? Assim veio a sensação de pesar saltando de dentro daquela gaveta.
Não, amigo leitor e querida leitora, não sou um autor nostálgico. Não tenho saudade do passado, o que tenho é a necessidade de escrever... Escrevo um pequeno fragmento de vida. Escrevo. Vejo um olhar, ouço uma voz, os dedos a percorrer pelos objetos... Encontro uma barata entre as recordações. Imediatamente, percebo que o passado é uma asquerosa barata voadora.
Salta a barata. Assusto-me. Sento à beira da cama. A barata some por algum canto. Aquela gaveta de lembranças... As lembranças são tão bonitas! Uma mulher nua; lembro-me de pessoas que foram embora há tanto tempo. Não choro. São apenas lembranças. Lembro-me da barata, levanto-me e fecho a gaveta.
Nessa vida é necessário
comparecer à lembrança com antecedência do futuro. Por isto escrevo, escrevo
para não mais abrir gavetas velhas e para não levar sustos com baratas
voadoras.
Ricardo Novais nasceu em São Paulo. Costuma dizer que só escreve
porque escrever é coisa infinita, ainda que seja somente rótulo. Rótulos podem
ser divertidos, superficiais, é verdade, mas bem divertidos. É autor do romance
O Boêmio e dos livros de contos Trem noturno e Perfumes da
pátria. Acredita que a vida e a morte são como um gol aos 45’ do segundo
tempo; o último gole é sempre a saideira.