29 de out. de 2025

Na vida, e em Brasília, um microcosmo do Brasil - uma análise de 'Só vale a pena se houver encanto', de André Giusti

Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

O jornalista e escritor André Giusti publicou, pela Editora Caos & Letras, o belíssimo romance Só vale a pena se houver encanto. Antes de irmos à resenha do livro propriamente dita, ressalto que li e resenhei, num passado recente, e com muito “encanto”, dois outros livros do autor: A maturidade angustiada, obra de 2017, e, mais recentemente, As filhas moravam com ele, publicado em 2023 e semifinalista do Prêmio Oceanos de 2024 na categoria prosa. Ambos de contos. Para quem trabalha com a crítica literária, ocorre que não há como lembrar de todos os detalhes de uma ou outra obra lida  – seria pedir demais. Todavia, não há como esquecer aquele autor que possui apurada capacidade de análise e síntese, aliada a uma inventiva original que consegue atrair o leitor para as malhas de sua ficção e, mais ainda, acerta sempre a mão em transmitir as mais profundas questões existenciais que nos afligem. Este autor certamente não será esquecido. Assim o é André Giusti. 

Volto agora a encontrar Giusti neste seu romance que certamente seduzirá os leitores. A narrativa versa basicamente sobre a vida de um certo Alessandro Romani, jornalista carioca que alimenta vago sonho de se tornar escritor, dentro de um arco temporal que se estende de 2002 a 2016, período – como sabemos – de grande efervescência política no país.  Formou-se jornalista no Rio, e trabalhou por 12 anos numa tal Rena - Rede Nacional de Rádio e Televisão, onde começou como estagiário, chegando, aos 34 anos, a diretor de redação. Pois bem: em um belo dia, o sujeito simplesmente é demitido sob a alegação de que havia a necessidade “premente” da empresa em trabalhar ‘reengenharias’,  ‘fazer mais com o menos’”. 

É então que certos sortilégios engendrados pelo destino começam a se descortinar ao jornalista. Após alguma dificuldade, encontrou nova colocação, mas em Brasília, a Capital Federal, onde passa a atuar como repórter em outra grande rede de comunicação, a TV Planalto. Casado com Renata, a essa altura, já nascera uma filha, e outra acaba nascendo prematura em Brasília. Mais algum tempo se passa, e encontramos Romani trabalhando muito, muito mesmo, na redação da TV Planalto como redator, acumulando a função de apresentador de telejornal. 

A narrativa cresce em interesse quando descreve em detalhes os bastidores das redações dos grandes veículos de notícias, incluindo o rosário de intrigas e disputas por posições e cargos que costumam ocorrer em ambientes do ramo jornalístico. Notadamente, porque tais ambientes reúnem circunstâncias que favorecem uma competição acirrada e muitas vezes desleal. É assim que, por vezes, o ideal de um jornalismo honesto e imparcial, que teria como objetivo básico informar a população e esclarecer consciências, muitas vezes cai por terra e dá lugar a outros interesses, sobretudo num país como o Brasil, de secular herança colonial e escravista, com forte tradição de desmandos e autoritarismos, onde o que se entende por democracia esteve sempre a mercê de outros propósitos. Um país relativamente jovem, que ainda tateia a democracia e, no contexto do romance, liberto recentemente de uma feroz ditadura militar que durou mais de 21 anos (1964-1985). Não se apaga o passado como num passe de mágica – ele está aí ainda hoje, latente...  

Romani, além da notória competência profissional que o levou a ascender na TV, não era dado a panelinhas, adulações e bajulações, não dava maior destaque a notícias que interessavam a este ou aquele poderoso, e – golpe de misericórdia – ganhava bem. Um profissional assim, positivamente não era visto com bons olhos pelo sistema – adiante voltaremos a essa questão de “sistema”. E novamente, o homem acaba sendo demitido, sem justificativa plausível. Despedido no mesmo dia em que, sem saber como dar a triste notícia em casa, fica sabendo que seria pai pela terceira vez... 

Embora o casal se amasse, a relação começa a se desgastar: ela focada em ascender socialmente na pequena burguesia da cidade; ele idealista, alimentando laivos de justiça social. Ela bem empregada no serviço público, ele no setor privado tal e qual peteca, de redação em redação. Daí à dissolução, as fases de sempre: desentendimentos, falta de diálogo, distância, indiferença e, afinal, o desamor causado em boa medida pela situação decorrente da tremenda instabilidade financeira que ele vivia como jornalista. O livro é também vívido roteiro de como uma relação amorosa e familiar vai sendo aos poucos minada. 

Eis alguns trechos do livro: 

“Eu olhava na tela do computador o documento do Word vazio, em branco, e pensava que sempre quis ter todo o tempo que pudesse para escrever. Agora eu tinha e não conseguia escrever uma linha que fosse. Como produzir literatura encostado em casa, desempregado havia quatro meses, sem perspectiva de trabalho e com a mulher pagando as contas? Desde que saíra da TV Planalto, o máximo que consegui arranjar foi um freelancer vagabundo, um roteiro para um sindicato mixuruca. Levaram dois meses para me pagar e, quando a grana saiu, mal deu para um tanque de gasolina e um pacote de fraldas. Dentro de mais algum tempo, eu seria pai de outra menina – sim, a terceira –, e tudo de enxoval que entrava vinha de meus sogros. Eu não conseguia comprar um babador para a neném” (p. 35). 

“Alessandro, esses concursos vão ter vagas pra jornalista de rádio e TV da Câmara e do Senado. Não é o que você gosta de fazer? Dar notícias na rádio e na televisão? Imagina fazer isso ganhando um baita dum salário e sem poder ser mandado embora!” 

“Os salários do Legislativo eram o eldorado da classe média de Brasília, ou o passaporte para quem vinha de baixo, mas podia estudar, ascender à tal da elite e virar um diferenciado com bela casa, carro novo todo ano, colégio caro para os filhos, férias naquela bobagem de Disney e, o que valia mais nessa história toda, o ponto alto da panaceia: não ser mandado embora. Tudo isso enquanto espera a velhice e uma bela e gorda aposentadoria” (p. 39). 

Foi assim que o experiente jornalista, apresentador de rádio e TV, mudou drasticamente sua rotina para conseguir entrar no serviço público. Ter onde trabalhar. Queimou dias e noites e noites a fio. Entrou para cursinho preparatório. Mas não conseguiu passar no concurso. O homem vivia sob tal pressão de passar em concurso ou se empregar fosse no que fosse, que acabou tornando-se agressivo, irritadiço. Acuado, sem conseguir emprego nenhum. Até que a coisa desandou de vez. 

André Giusti, ao conceber o personagem Alessandro Romani (com alta dose de autoficção, facilmente verificável, é verdade), acabou dando vida e voz àquela sensação que todo brasileiro consciente tem: de que há algo de muito podre no reino da Bruzundanga. Alguns números que espantam. O Brasil tem um Congresso apontado como o segundo mais caro do mundo em termos de custo absoluto. Um país no qual o 1% mais rico da população concentra 28,3% da renda total do país, e que, finalmente, é classificado na 84ª posição no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Eis o que produziu nosso capitalismo voraz no qual ninguém vale nada, não importa se não sabe ler ou se tem grande preparo profissional – ninguém é cidadão. 

Somos uma nação fatalmente condenada a seríssimas consequências sociais negativas. E ninguém se persuada de que a questão é de “Direitas” ou de “Esquerdas”, porque a estrutura que o Estado brasileiro acabou por erigir, e se espraia de Brasília por todo o país, favorece tal injustiça muito para além de bandeiras partidárias. E mais: a nossa questão fulcral é de consciência. Vivemos um desequilíbrio social gigantesco e nossa consciência coletiva é tão retrógrada que o anseio predominante é o de “amarrar o boi na sombra” ou "estar com a vida ganha", o que em outras palavras significa perseguir um ideal de tranquilidade, conforto e ausência de preocupações, geralmente associado a não precisar trabalhar ou ter responsabilidades. 

Pode-se acusar o protagonista Alessandro Romani de tudo, porque de fato deu suas cabeçadas na vida. Menos de ter vendido sua alma, de ter deixado de acreditar e lutar com todas as suas forças pelos valores éticos e morais nos quais acreditava. Foi punido  – com demissões sucessivas, desemprego sistemático, incompreensão na própria família  –, como o mundo ainda pune aqueles que não se vendem e se insurgem contra as injustiças, os conchavos e as maracutaias que rondam o poder e nossa vida social. O livro acaba por se constituir numa excepcional análise – talvez o seu maior mérito – de como um sistema socialmente tão injusto como o que se vive no Brasil se estabelece e chega a ponto de convencer a maioria de que assim mesmo que “as coisas” são, e assim devem permanecer. Exemplo muito claro de como se opera a anuência, a concordância, o consentimento das pessoas. De como, afinal, se conformar, sonhar e desejar ardentemente fazer parte desse sistema de privilégios excludentes, mesmo que para isto se acabe o mundo de quem quer que seja. Mesmo que haja miséria por toda parte. E haja até quem pose de psicólogo e coach a pregar inteligência emocional e formação de lideranças, vomitando discursos de misericórdia, amor-próprio, superação, resiliências e lideranças em ambientes tensionados, etc., ao tempo em que é incapaz de sentir qualquer empatia por um mendigo esfarrapado que pede comida na porta de um restaurante. Diante de uma mentalidade dominante assim, a história tem demonstrado que as provações coletivas costumam sobrevir com força descomunal. Tais ocorrências, claro, provêm do acaso, porque não existe Deus, não existe nada além da matéria! 

Alessandro Romano, depois da separação de Renata com quem foi casado por 12 anos e teve três filhas, embarcou num percurso tortuoso e equivocado de relacionamentos amorosos sucessivos nos quais conheceu e vivenciou outras personalidade, quase todas tão desorientadas, perdidas, carentes e, sobretudo, traumatizadas quanto ele. Assim o mundo, assim o Brasil. Estamos todos desorientados. O amor não se fundamenta mais em desejos de permanência, de futuro, de construção a dois. As relações se estabelecem via atração física ou outra pequena afinidade que aproxima inicialmente, mas que desmorona ao menor abalo. Só decepções. 

Romano segue a vida numa revolta surda, entrega-se a porres e mais porres de vinho, ouvindo rock e blues solitariamente, saudoso das filhas distantes, longe da família, constantemente em situação de subemprego ou desemprego. Procura uma improvável boia de salvação entre as pernas das mulheres, que, carentes como ele, cedem à tentação. Por dentro, a imensa necessidade de dedicar-se à literatura sempre ali a lhe espicaçar os brios.... E a pulga tremenda da dúvida a ferrar-lhe a orelha a inquirir se existe mesmo o espírito humano (?), a vida para além desta vida que seu pai tanto acreditava. Justamente seu pai, aquele homem espiritualista que lhe transmitiu também um dos maiores valores que um ser humano pode cultivar: a retidão de caráter, a honestidade. Romano passa a viver num desesperador horizonte, fechado... 

Há na vida quem retroceda e quem progrida mesmo em face de grandes dificuldades; quem acumula valores e quem os desperdiça; quem para indolente, preferindo o ócio ao empreendimento do fatigante labor de seu próprio progresso. Ser consciência em construção contínua ou desfazimento; estamos todos a caminho e cada um, com a voz de sua alma, luta, se agita, semeia e colhe; lança livremente com as próprias ações a semente de onde nascerá depois o seu inexorável destino. Livre é em nosso nível evolutivo a escolha dos atos e das sendas, livre a escolha das causas; isto nos concede o livre-arbítrio, mas não é livre a escolha das consequências e dos seus efeitos que inexoravelmente nos chegam. 

Assim Romano segue seu caminho solitário. Não tem mais esposa, não tem mais a convivência diária com as filhas, equilibra-se como pode sobre o fio da navalha do desemprego, ou é obrigado, para não passar fome, a aceitar subempregos. Um rosário de desacertos e carências afetivas entre bebedeiras e revolta. Que fim terá uma vida assim? Sem amor, sem companhia, sem a família que com tanto sofrimento construiu e, pior, sem dinheiro? Cairá em desgraça completa ou terá forças para sublimar o sofrimento e abrir os olhos para outras realidades da vida? A certa altura do texto de Giusti, Vincenzo, um dos personagens mais emblemáticos da narrativa, pergunta a Alessandro Romani: “Eu vivi com encanto pela vida, Romani. Você sabe o que é encanto?” Encontrará ele, afinal, um sentido para a própria vida, o “encanto de viver”? Vale a pena, e muito, conferir o desfecho surpreendente dessa narrativa. 

 

Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor, entre outros, de O Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Embriagado Intelecto e outros contos, À flor da pele (contos) e Destinos que se cruzam (romance). Possui textos publicados em revistas no Brasil, Portugal, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do rebanho (Editora Chiado, romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE/RJ) em 2014. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea, colaborando em diversos jornais, revistas e sites literários.