Por Cynthia Costa
A Argentina passou por uma dura ditadura entre 1976 e 1983. O julgamento dos mandantes de torturas e desaparecimentos de civis ao longo daqueles sete fatídicos anos é retratado no filme Argentina, 1985, do diretor portenho Santiago Mitre, estrelado pelo ator-chave do cinema argentino, Ricardo Darín.
Embora o longa, de quase duas horas e meia, não seja original do ponto de vista estrutural, já que segue à risca a cartilha dos bons dramas de tribunal estadunidenses, seu ritmo é dinâmico e os diálogos, cativantes. Nessa adaptação de fatos reais, Strassera (Darín) e Ocampo (Peter Lanzani) levam ao banco dos réus alguns dos responsáveis pelos abusos cometidos ao longo do governo civil-militar, dentre os quais o próprio ditador Jorge Rafael Videla.
Nós, espectadores, acabamos envolvidos na luta dos promotores, mas sem nos sentirmos induzidos ao choro e à revolta, o que consiste em um trunfo do filme. Não apelar ao sentimentalismo é difícil em se tratando de uma narrativa sobre a ditadura argentina, que teve tudo de pior que se possa imaginar, com exceção da vitória na Copa de 1978 (um afago nacionalista em meio à crise econômica e à perseguição aos “subversivos”).
A experiência proposta por Mitre, baseada no roteiro de Mariano Llinás com colaboração de Martín Mauregui, consegue ser imersiva sem ser piegas graças ao tom sóbrio adotado pelas vítimas de crimes contra a humanidade em seus longos depoimentos no tribunal e à acidez exercitada por Strassera, promotor principal. Favorecem o clima do filme os toques de humor e a edição ligeira, o que o torna menos lúgubre do que poderia ser – já que a história carrega o peso dos possíveis 30 mil desaparecidos do último período ditatorial argentino, muitos deles lamentados pelas mães e avós da Praça de Maio. À moda do que fizeram Todos os homens do presidente (1976), de Alan J. Pakula, e Spotlight: segredos revelados (2015), de Tom McCarthy, Argentina, 1985 aborda um tópico delicado com seriedade e, ao mesmo tempo, entusiasmo.
A ambientação é um deleite à parte, com figurinos, cenários e tomadas aéreas nos transportando a Buenos Aires de 37 anos atrás. O uso de fotos da época e vídeos do julgamento real colaboram para a verossimilhança, o que há de garantir ao filme lugar cativo nas aulas de história contemporânea das escolas argentinas.
É claro que, como em toda tentativa de relatar a realidade, Argentina, 1985 não tem como cobrir todo um momento histórico complexo, nem tem como explicitar o que é verídico e o que foi adaptado/aproximado/inventado em benefício da narrativa. Não sabemos, por exemplo, se a mãe de Ocampo realmente frequentava a mesma igreja que Videla. Nem até que ponto foram as ameaças aos dois promotores durante sua cruzada.
De toda forma, como uma espécie de apelo à memória coletiva, o filme de Mitre fala aos brasileiros, que em 1985 também passavam por uma fase de transformação sociopolítica. Hoje, acabamos de testemunhar a conquista argentina no futebol com mais senso de irmandade do que se esperaria tempos atrás. Bom momento para mergulhar no cinema argentino, que tem muito a oferecer (não arrisco dizer se mais ou menos do que o futebol...).
Uma
produção da Amazon, o filme pode ser visto no Prime Video brasileiro.
Cynthia Beatrice Costa é tradutora e professora do curso de Tradução da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pesquisa na área de tradução literária e adaptação cinematográfica. Nascida em Osasco (SP), formou-se em Jornalismo pela Cásper Líbero e trabalhou por mais de uma década como repórter de revistas e editora de livros, enquanto foi se especializando ao longo das pós-graduações. Leitora voraz e cinéfila de carteirinha. Livro e filme preferidos: Dom Casmurro e Janela Indiscreta.