4 de set. de 2025

A escrita delirante de Ariana Harwicz

 Por Márcia Barbieri

O livro é estruturado em capítulos curtos e fragmentados, apresenta mudanças de perspectiva e tempo.  Harwicz utiliza um fluxo de consciência que alterna os pensamentos das personagens com descrições de cenas externas. 

A obra é narrada em primeira pessoa por uma mulher jovem, que vive com a mãe no interior da França. O enredo apresenta essa dupla de mulheres que compartilham a vida numa relação íntima e violenta. Em vários pontos do livro mãe e filha quase se insere num estranho desejo de triangulação amorosa.

A mito do amor materno é um tema caro à literatura. A figura materna sempre está associada ao amor incondicional, não se espera que uma mãe odeie o fruto do seu próprio ventre.  A mãe encarna a validação de quem somos, faz parte da nossa história íntima, ela é responsável por aquilo que herdamos e raramente conseguimos fugir dessas heranças. 

Uma mãe pode odiar a própria filha? A resposta imediata seria não. No entanto, Ariana responde de forma diferente a esse questionamento, e A débil mental transforma essa pergunta numa escrita potente e visceral.

O romance questiona a lógica da mãe ideal, pois apresenta uma mãe que não possui nenhum traço de bondade ou abnegação, pelo contrário, encontramos uma mãe que é capaz de disputar o amante com a filha.

Com um olhar alucinante para as próprias experiências e traumas, a personagem desenvolve uma narrativa em forma de looping, levando o leitor a se perguntar se realmente aquilo é verdade ou faz parte de um surto psicótico.

Em A débil mental Ariana joga luz sobre o desenvolvimento da personagem da infância à vida adulta,  acompanha o seu processo de se tornar mulher e a brutalidade contida nas dinâmicas com a figura materna e com a sexualidade. Aqui, a mãe também é uma entidade sexualizada: “Na verdade, sonhando que entram dois indivíduos de chapéu de aba larga pela porteira, pedem licença e começam a nos violar contra as cadeiras, contra a gangorra de madeira na pérgola, uma por trás, a filha pela frente” (Harwicz, 2020, p. 12).


A forma de escrita de Ariana é singular, podendo causar certo estranhamento a leitores que estão acostumados com uma narrativa linear e explicável. Considero que essa é uma das melhores qualidades da escritora, pois não subjuga o seu leitor. Obviamente a autora não está preocupada com as exigências do mercado literário, ela não faz concessões e isso fica evidente durante a leitura. Segundo a própria autora: “A grande diferença entre um escritor e um trabalhador da escrita (ou um escritor profissional) é que o último controla a sua obra. Ele se põe a serviço da demanda. (...) Por outro lado, o escritor não profissional não pode controlar o seu coração, precisa fazer o livro que precisa fazer, até as últimas consequências” (Harwicz, 2024, p. 24).

Embora o romance não ultrapasse cem páginas, A Débil Mental não nos dá descanso.  Somos projetados para um fluxo de palavras que mistura realidade, ficção, fragmentos, delírios e pesadelos: “Vou dormir como o exercício de olhar fixo para um barranco antes de pular. Estão me amamentando. Eu me divorcio cerebralmente de tudo e já não estou nessa casona entre as pernas da mamãe nem com a boca sorvendo seu mamilo” (Harwicz, 2020, p. 20).

A autora faz com que encaremos de frente os seus fantasmas, que não deixam de ser nossos fantasmas também, ela nos dá uma rasteira e faz com que abandonemos nosso mundo cor-de-rosa e entremos em um cenário muito mais perturbador. Não é à toa que alguns leitores não foram capazes de seguir adiante.  Esse é um livro para pessoas audazes. Vale muito a pena a experiência!

 

Referências bibliográficas:

HARWICZ, Ariana. A débil mental. São Paulo: editora Instante, 2020.

_____________. O ruído de uma época. São Paulo: editora Instante, 2024.

 

Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979.  Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de SaturnoAs mãos mirradas de Deus e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas. Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013), lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A PutaO enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e A casa das aranhas, semifinalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio Guarulhos de Literatura.