Por Márcia Barbieri
O livro é estruturado em capítulos curtos e fragmentados, apresenta mudanças de perspectiva e tempo. Harwicz utiliza um fluxo de consciência que alterna os pensamentos das personagens com descrições de cenas externas.
A obra é narrada em primeira pessoa por uma mulher jovem, que vive com a mãe no interior da França. O enredo apresenta essa dupla de mulheres que compartilham a vida numa relação íntima e violenta. Em vários pontos do livro mãe e filha quase se insere num estranho desejo de triangulação amorosa.
A mito do amor materno é um tema caro à literatura. A figura materna sempre está associada ao amor incondicional, não se espera que uma mãe odeie o fruto do seu próprio ventre. A mãe encarna a validação de quem somos, faz parte da nossa história íntima, ela é responsável por aquilo que herdamos e raramente conseguimos fugir dessas heranças.
Uma mãe pode odiar a própria filha? A resposta imediata seria não. No entanto, Ariana responde de forma diferente a esse questionamento, e A débil mental transforma essa pergunta numa escrita potente e visceral.
O romance questiona a lógica da mãe ideal, pois apresenta uma mãe que não possui nenhum traço de bondade ou abnegação, pelo contrário, encontramos uma mãe que é capaz de disputar o amante com a filha.
Com um olhar alucinante para as próprias experiências e traumas, a personagem
desenvolve uma narrativa em forma de looping, levando o leitor a se perguntar
se realmente aquilo é verdade ou faz parte de um surto psicótico.
Em A débil mental Ariana joga luz sobre o desenvolvimento da personagem
da infância à vida adulta, acompanha o seu processo de se tornar mulher e
a brutalidade contida nas dinâmicas com a figura materna e com a sexualidade.
Aqui, a mãe também é uma entidade sexualizada: “Na verdade, sonhando que entram
dois indivíduos de chapéu de aba larga pela porteira, pedem licença e começam a
nos violar contra as cadeiras, contra a gangorra de madeira na pérgola, uma por
trás, a filha pela frente” (Harwicz, 2020, p. 12).
Embora o romance não ultrapasse cem páginas, A Débil Mental não nos dá descanso. Somos projetados para um fluxo de palavras que mistura realidade, ficção, fragmentos, delírios e pesadelos: “Vou dormir como o exercício de olhar fixo para um barranco antes de pular. Estão me amamentando. Eu me divorcio cerebralmente de tudo e já não estou nessa casona entre as pernas da mamãe nem com a boca sorvendo seu mamilo” (Harwicz, 2020, p. 20).
A autora faz com que encaremos de frente os seus fantasmas, que não deixam de ser nossos fantasmas também, ela nos dá uma rasteira e faz com que abandonemos nosso mundo cor-de-rosa e entremos em um cenário muito mais perturbador. Não é à toa que alguns leitores não foram capazes de seguir adiante. Esse é um livro para pessoas audazes. Vale muito a pena a experiência!
Referências
bibliográficas:
HARWICZ,
Ariana. A débil mental. São Paulo: editora Instante, 2020.
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O ruído de uma época. São Paulo: editora Instante, 2024.
Márcia Barbieri nasceu em Indaiatuba, São Paulo, em 1979. Formou-se em Letras pela Unesp e é mestra em Filosofia pela Unifesp. Participou de várias antologias e tem textos nas principais revistas literárias brasileiras. Publicou os livros de contos Anéis de Saturno, As mãos mirradas de Deus e O exílio do eu ou a revolução das coisas mortas. Entre os romances figuram Mosaico de rancores (Terracota, 2013), lançado no Brasil e na Alemanha (Clandestino Publikationen, 2016), A Puta, O enterro do lobo branco (Patuá, 2017), finalista como melhor romance de 2017 pelo Prêmio São Paulo de Literatura 2018 e A casa das aranhas, semifinalista do Prêmio Oceanos e do Prêmio Guarulhos de Literatura.
