Por Whisner Fraga
Em A
cachorra (Intrínseca, 2020), Pilar Quintana entrega ao leitor um
romance de linguagem seca, direta, quase rude, mas que reverbera como o mar que
contorna a vila onde a trama se passa: ora tranquilo, ora descontrolado. Nesta
narrativa breve, mas intensa, conhecemos Damares, uma mulher que vive em um
balneário costeiro da Colômbia, ao lado do companheiro Rogelio e de cães
marcados pela violência com que são tratados naquele lar.
Quintana constrói, com impressionante economia de
palavras, com um estilo seco e direto, o retrato de uma existência oprimida
pela solidão, pela falta de compreensão e pela dureza da sobrevivência. A casa
em que vivem, quase em ruínas, simboliza a precariedade de tudo ao redor,
enquanto o clima chuvoso, os pernilongos, a lama, reforçam a sensação de
degradação física e emocional. Ao mesmo tempo, há um esforço constante para
manter tudo limpo e em ordem, como se os donos do imóvel pudessem voltar a
qualquer momento. Essa sensação de perigo, de algo que está sempre prestes a
acontecer, rondando, essa possibilidade, parece mais importante do que tudo,
mais até do que o próprio relacionamento entre Damares e Rogelio.
A prosa é crua, sem adornos. Há diálogos curtos,
quase sempre ásperos, e uma sensação de violência suspensa paira sobre cada
página, como se qualquer gesto pudesse desencadear a ruína final. Damares
projeta na cachorra seus desejos mais secretos de afeto e pertencimento, mas o
animal, em sua essência livre, parece rejeitar a prisão que a própria mulher
escolheu para si. É mais uma contradição.
A cachorra extrai carinho das mãos grandes e
calejadas de Damares. Nestes momentos de aparente compreensão, as duas tecem um
universo delas, de cumplicidade, de empatia, mas também de medo. Todos sabem
que o extinto de sobrevivência é muito mais forte do que a compaixão, do que a
amizade.
Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.