12 de jul. de 2025

A precariedade do afeto

Por Whisner Fraga 

Em A cachorra (Intrínseca, 2020), Pilar Quintana entrega ao leitor um romance de linguagem seca, direta, quase rude, mas que reverbera como o mar que contorna a vila onde a trama se passa: ora tranquilo, ora descontrolado. Nesta narrativa breve, mas intensa, conhecemos Damares, uma mulher que vive em um balneário costeiro da Colômbia, ao lado do companheiro Rogelio e de cães marcados pela violência com que são tratados naquele lar.

 


Ao adotar uma cadela recém-nascida, Damares parece buscar nela o consolo da maternidade negada. No entanto, a relação entre ambas logo se tinge de ambiguidade – a docilidade inicial da cachorra cede lugar a momentos de rebeldia, o que torna insuportável para Damares a experiência de se ver novamente rejeitada pelo afeto que tenta cultivar.
 

Quintana constrói, com impressionante economia de palavras, com um estilo seco e direto, o retrato de uma existência oprimida pela solidão, pela falta de compreensão e pela dureza da sobrevivência. A casa em que vivem, quase em ruínas, simboliza a precariedade de tudo ao redor, enquanto o clima chuvoso, os pernilongos, a lama, reforçam a sensação de degradação física e emocional. Ao mesmo tempo, há um esforço constante para manter tudo limpo e em ordem, como se os donos do imóvel pudessem voltar a qualquer momento. Essa sensação de perigo, de algo que está sempre prestes a acontecer, rondando, essa possibilidade, parece mais importante do que tudo, mais até do que o próprio relacionamento entre Damares e Rogelio.

 

A prosa é crua, sem adornos. Há diálogos curtos, quase sempre ásperos, e uma sensação de violência suspensa paira sobre cada página, como se qualquer gesto pudesse desencadear a ruína final. Damares projeta na cachorra seus desejos mais secretos de afeto e pertencimento, mas o animal, em sua essência livre, parece rejeitar a prisão que a própria mulher escolheu para si. É mais uma contradição.

 

A cachorra extrai carinho das mãos grandes e calejadas de Damares. Nestes momentos de aparente compreensão, as duas tecem um universo delas, de cumplicidade, de empatia, mas também de medo. Todos sabem que o extinto de sobrevivência é muito mais forte do que a compaixão, do que a amizade.

 

A cachorra, em sua simplicidade enganosa, deixa marcas profundas no leitor, como sempre acontece após a leitura de um bom livro. Pilar Quintana apresenta personagens cuja humanidade transparece justamente em seus aspectos mais brutais, mostrando que, sob a crosta da violência e do egoísmo, pulsa sempre a carência, a necessidade profunda que o ser humano tem de ser amado e compreendido. Um livro marcante, de uma escritora que merece maior atenção do público brasileiro.

Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros usufruto de demônios (Ofícios Terrestres, contos, 2022, finalista do Prêmio Jabuti), usufruto de ruínas (Ofícios Terrestres, contos, 2023), as fomes inaugurais (Sinete, contos, 2024), entre outros. Teve contos traduzidos para o inglês, árabe e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.