19 de mai. de 2023

O 'Edifício Ouroboros' e a perversão nossa em tempos líquidos


Por Krishnamurti Góes dos Anjos
 

No conto 'O alienista' de Machado de Assis, publicado pela primeira vez no livro Papéis avulsos, lemos a história de Simão Bacamarte, um médico que instala-se em Itaguaí, interior do Rio de Janeiro com o objetivo de estudar a loucura e sua classificação. Com apoio da Câmara Municipal, constrói um hospício a que deu o nome de Casa Verde. E tome-lhe a confinar os loucos e os suspeitos de loucura – sobretudo estes últimos -, no mesmo local. A certa altura do texto de Machado lemos uma sentença do Simão Bacamarte: “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.” Muito bem; isto Machado escreveu ali por volta de 1882. De lá para cá, parece-nos que o “continente dos loucos” tem crescido desmesuradamente em todos os quadrantes. 

Não há como deixar de lembrar desse conto de Machado de Assis ao lermos Edifício Ouroborus do escritor e psicanalista Renato Tardivo, publicado pela Editora Reformatório. Um pequena obra (12 x 19cm – 112p.), catalogada como “Contos brasileiros”, em que estão reunidas 18 breves narrativas dando-nos conta de um hipotético condomínio no qual reside uma galeria de personagens que, devassados em suas intimidades pela ficção de Tardivo – sobretudo as sexuais –, deixariam o doutor Simão Bacamarte de Machado no mínimo perplexo.  

Uma obra de difícil enquadramento teórico é verdade, lembra um pouco aquele romance do Graciliano Ramos, o Vidas secas, que foi concebido e composto realmente como contos – que de fato o são, com as características estruturantes do gênero, e que pela habilidade do velho Graça podem ser lidos em qualquer ordem sem que se altere a profunda perquirição psicológica ali empreendida. Seria em tempos de tanta diluição das fronteiras entre os gêneros literários como o nosso, uma perda de tempo atermo-nos em extensas e estreitas definições dessa natureza, levando-se em conta sobretudo, a mensagem social mais profunda que o texto como um todo nos passa. Fiquemos com a ideia de algo entre um longo conto e uma pequena novela.

Sim, cotejando as duas obras, os conceitos de loucura e perversão se confundem na mente do leitor. Vale destacar, todavia, que na seara do histórico das investigações sobre os desvios da mente humana, a loucura que era atribuída, lá no século XIX a todo comportamento não aceitável, dentro do que se convencionou à época, chamar de normalidade teve inúmeros estudos e pesquisas. Avançamos bastante. Sim, como não? Sigmund Freud em seu Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade que é obra de 1905, aprofunda a sua teoria da sexualidade e desenvolvimento psicossexual. Estudou e estruturou inclusive as características dos ditos comportamentos perversos, que ainda assim, tem sido até hoje, corriqueiramente, entendidos difusamente como a ação ou efeito de perverter, de contrariar as leis da natureza e da vida moral. Seria também o estado da pessoa que apresenta devassidão (obscenidade), a tal da perversão sexual. 

Voltemos ao livro. A trama central é o registro dos acontecimentos de apenas um dia no cotidiano do Edifício, e como eles se interconectam. Em um primeiro movimento, o texto, intitulado 'Aleta' arma o cenário da narrativa, identifica alguns personagens e o último, 'Edifício Ouroboros', oferece o desfecho surpreendente. Precisam ser lidos nessa sequência, pois se interligam de modo a fechar o ciclo da narrativa. Os demais vão clareando aos poucos aqueles acontecimentos sob a ótica dos personagens. Mas atenção; é importante frisar que a narrativa se estrutura sobre um discurso indireto livre, em que as falas dos personagens se mesclam ao discurso de narrador onisciente que reconstrói minuciosamente os eventos daquele dia fatídico. Disto decorre a existência de um tempo psicológico pouco explorado e que aproxima o leitor das angústias, medos e dores das personagens, mas na visão do narrador, e não propriamente das falas dos personagens. É um livro não linear mas que, ainda assim, consegue sustentar uma tensão dramática eivada de mistérios e de uma anunciação sinistra e misteriosa repetida várias vezes.

No interior da narrativa alternam-se cenas e situações que nos levam a refletir sobre o componente sexual em certas atitudes apontando não propriamente para desvios de caráter, mas escolhas pessoais. Há casos em que o sujeito finge utilizar o simbólico dentro dos códigos convencionais da linguagem, mas introduz um sentido todo seu, criando uma ambiguidade da qual vai se beneficiar, em detrimento do outro, e/ou sem o consentimento deste. Entre os registros feitos há alguns que fariam Jean Genet se revirar no caixão, como a atitude de dona Norma que compra pelos correios, e no mais absoluto sigilo, um Sex toy, ou boneco sexual realista que lhe é comodamente entregue na portaria do prédio desmontado dentro de uma caixa de papelão e ela mantém relações sexuais com o boneco.  Outro caso; uma cena de sadomasoquismo consentido entre um casal. E ao fundo disto tudo, e muito sutilmente, se desenha a tolerância velada de toda uma vizinhança indiferente às extremas violências físicas sofridas por um menino, (um menino preto), órfão de pai e mãe, criado pela esposa de um tio (este também finado).

Estas ‘perversões’ mais cabeludas, se entrelaçam à outras, onde não faltam exemplos de estruturas sociais perversas como os dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana. Vide o exemplo da delegada de polícia civil, dona Regina, que atua em operações sensacionalistas de prisões em flagrante de secretários de estado corruptos, e por outro lado faz ‘vista grossa’ ao comportamento também corrupto do marido, pois “ela sabe que, quando o esquema é grande, não se abre o bico. E está tudo certo, contanto que comprem um apartamento maior no próximo ano”. As perversões proliferam (e perdemos completamente o senso do que é patológico ou não), como aquela que dita os excessos de cuidados com o corpo por exclusiva questão de aparência física, como é o caso de dona Elis que aos 45 anos “malha horrores” para ter um corpo perfeito; ou ainda no comportamento de uma Daniela Gismontini, bela, jovem e talentosa repórter de Tevê que passa horas e horas a fazer caras e bocas no Instagram só para angariar seguidores.

A tal da modernidade líquida, (termo cunhado por Zygmunt Bauman que caracteriza a sociedade atual pela sua crescente superficialidade, liquidez, volatilidade e fluidez), engoliu e solapou os próprios valores com os quais poderíamos estabelecer a relações morais necessárias ao amor humano. Vivemos uma espécie de “secularização erótica” onde o desejo vai racionalizando-se para atender a uma demanda de mercado, constituindo-se em impulso aquisitivo. Estamos em plena vigência de uma perversão aceita e incentivada a torto e a direito (uma perversão flexível e silenciosa), via dissociação e simplificação produzidas pela montagem das aparências e simulacros. Dissociação e simplificação encontradas na principal expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta propriedade ou esta função que permite transformar o outro em objeto inanimado (meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim para o qual todos os meios se justificam). Estamos mesmo em uma barafunda existencial. 

Para aqueles que ainda não se deram conta da brutal distinção entre as palavras louco e perverso, e antes da conclusão do texto, sejamos ainda mais explícitos. Há distinção sim, entre uma e outra palavra: Louco é aquele cujo comportamento ou raciocínio denota algumas alterações patológicas mentais; seus atos e palavras parecem extravagantes, desarrazoados. Está sempre flanando e contatando seu mundo interno. Já o perverso não aceita a castração nem a frustração, atua com atitudes impulsivas e de grande alarme, buscando a notoriedade e a visibilidade que o poder confere, mesmo que tenha de adotar práticas estranhas e deliberadamente perigosas na tentativa de submeter o outro ao seu desejo, ainda que leve tudo à derrocada e sem qualquer sentimento de culpa ou remorsos. Segundo os estudiosos da matéria, tal comportamento estrutura-se sobre uma vontade explícita de transgredir a ordem natural das coisas, de perturbar a norma social, de modo a garantir seu poder ou crescimento. Trata-se, para além da questão mental, de um fenômeno social, físico, político e estrutural. 

Finalmente, vale referir duas frases que aparecem no livro e que nos fazem pensar em profundidade. Uma delas sentencia: “para tudo se dá um jeito, menos para a morte.” P. 78.  O Big Bang que nos colocou nessa bolinha de barro que é o planeta Terra (Deus não, que até a ideia de Deus à essa altura já foi apropriada por outras tantas perversões religiosas), ainda continua a deter as chaves dos grandes enigmas da vida e da morte... A segunda frase; “Só vive para sempre a morte”, sentença que aparece nas páginas 42, 90, 102 e 104 e, em que pese o desfecho trágico e surpreendente do último capítulo ou conto – como queiram, faz-nos pensar sobre o significado dessa palavrinha estranha e mítica. “Ouroboros”, é a figura de uma cobra a engolir o próprio rabo e, para além de estar ostensivamente tatuada, entre os peitos de uma personagem, a repórter Daniela Gismontini, que muito provavelmente nem imagina o que significa aquela imagem muito engraçadinha e “super fashion” de uma cobra engolindo a si mesma, é antiquíssimo símbolo mitológico de origem grega.  Há interpretações que contemplam a serpente que engole a própria cauda e forma um círculo a simbolizar o ciclo da vida, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, e em última instância, a renovação urgente do humano ao emergir para um outro nível de existência simbolizado pelo círculo. Aí está, portanto, o passo que insistimos em não dar...

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Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com 


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado, À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.