Por Krishnamurti Góes dos Anjos
No conto 'O alienista' de Machado de Assis,
publicado pela primeira vez no livro Papéis avulsos, lemos a história de
Simão Bacamarte, um médico que instala-se em Itaguaí, interior do Rio de
Janeiro com o objetivo de estudar a loucura e sua classificação. Com apoio da
Câmara Municipal, constrói um hospício a que deu o nome de Casa Verde. E
tome-lhe a confinar os loucos e os suspeitos de loucura – sobretudo estes
últimos -, no mesmo local. A certa altura do texto de Machado lemos uma
sentença do Simão Bacamarte: “A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora
uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente.”
Muito bem; isto Machado escreveu ali por volta de 1882. De lá para cá,
parece-nos que o “continente dos loucos” tem crescido desmesuradamente em todos
os quadrantes.
Não há como deixar de lembrar desse conto de
Machado de Assis ao lermos Edifício Ouroborus do escritor e psicanalista
Renato Tardivo, publicado pela Editora Reformatório. Um pequena
obra (12 x 19cm – 112p.), catalogada como “Contos brasileiros”, em que estão
reunidas 18 breves narrativas dando-nos conta de um hipotético condomínio no
qual reside uma galeria de personagens que, devassados em suas intimidades pela
ficção de Tardivo – sobretudo as sexuais –, deixariam o doutor Simão Bacamarte
de Machado no mínimo perplexo.
Uma obra de difícil enquadramento teórico é
verdade, lembra um pouco aquele romance do Graciliano Ramos, o Vidas secas,
que foi concebido e composto realmente como contos – que de fato o são, com as
características estruturantes do gênero, e que pela habilidade do velho Graça
podem ser lidos em qualquer ordem sem que se altere a profunda perquirição
psicológica ali empreendida. Seria em tempos de tanta diluição das fronteiras entre
os gêneros literários como o nosso, uma perda de tempo atermo-nos em extensas e
estreitas definições dessa natureza, levando-se em conta sobretudo, a mensagem
social mais profunda que o texto como um todo nos passa. Fiquemos com a ideia
de algo entre um longo conto e uma pequena novela.
Sim, cotejando as duas obras, os conceitos de
loucura e perversão se confundem na mente do leitor. Vale destacar, todavia,
que na seara do histórico das investigações sobre os desvios da mente humana, a
loucura que era atribuída, lá no século XIX a todo comportamento não aceitável,
dentro do que se convencionou à época, chamar de normalidade teve inúmeros
estudos e pesquisas. Avançamos bastante. Sim, como não? Sigmund Freud em seu Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade que é obra de 1905, aprofunda a
sua teoria da sexualidade e desenvolvimento psicossexual. Estudou e estruturou
inclusive as características dos ditos comportamentos perversos, que ainda
assim, tem sido até hoje, corriqueiramente, entendidos difusamente como a ação
ou efeito de perverter, de contrariar as leis da natureza e da vida moral.
Seria também o estado da pessoa que apresenta devassidão (obscenidade), a tal
da perversão sexual.
Voltemos ao livro. A trama central é o registro dos
acontecimentos de apenas um dia no cotidiano do Edifício, e como eles se
interconectam. Em um primeiro movimento, o texto, intitulado 'Aleta' arma o
cenário da narrativa, identifica alguns personagens e o último, 'Edifício
Ouroboros', oferece o desfecho surpreendente. Precisam ser lidos nessa
sequência, pois se interligam de modo a fechar o ciclo da narrativa. Os demais
vão clareando aos poucos aqueles acontecimentos sob a ótica dos personagens.
Mas atenção; é importante frisar que a narrativa se estrutura sobre um discurso
indireto livre, em que as falas dos personagens se mesclam ao discurso de
narrador onisciente que reconstrói minuciosamente os eventos daquele dia
fatídico. Disto decorre a existência de um tempo psicológico pouco explorado e
que aproxima o leitor das angústias, medos e dores das personagens, mas na
visão do narrador, e não propriamente das falas dos personagens. É um livro não
linear mas que, ainda assim, consegue sustentar uma tensão dramática eivada de
mistérios e de uma anunciação sinistra e misteriosa repetida várias vezes.
No interior da narrativa alternam-se cenas e
situações que nos levam a refletir sobre o componente sexual em certas atitudes
apontando não propriamente para desvios de caráter, mas escolhas pessoais. Há
casos em que o sujeito finge utilizar o simbólico dentro dos códigos
convencionais da linguagem, mas introduz um sentido todo seu, criando uma
ambiguidade da qual vai se beneficiar, em detrimento do outro, e/ou sem o
consentimento deste. Entre os registros feitos há alguns que fariam Jean Genet
se revirar no caixão, como a atitude de dona Norma que compra pelos correios, e
no mais absoluto sigilo, um Sex toy, ou boneco sexual realista que lhe é
comodamente entregue na portaria do prédio desmontado dentro de uma caixa de
papelão e ela mantém relações sexuais com o boneco. Outro caso; uma cena
de sadomasoquismo consentido entre um casal. E ao fundo disto tudo, e muito
sutilmente, se desenha a tolerância velada de toda uma vizinhança indiferente
às extremas violências físicas sofridas por um menino, (um menino preto), órfão
de pai e mãe, criado pela esposa de um tio (este também finado).
Estas ‘perversões’ mais cabeludas, se entrelaçam à
outras, onde não faltam exemplos de estruturas sociais perversas como os
dispositivos burocráticos responsáveis pela judicialização da vida cotidiana.
Vide o exemplo da delegada de polícia civil, dona Regina, que atua em operações
sensacionalistas de prisões em flagrante de secretários de estado corruptos, e
por outro lado faz ‘vista grossa’ ao comportamento também corrupto do marido,
pois “ela sabe que, quando o esquema é grande, não se abre o bico. E está tudo
certo, contanto que comprem um apartamento maior no próximo ano”. As perversões
proliferam (e perdemos completamente o senso do que é patológico ou não), como
aquela que dita os excessos de cuidados com o corpo por exclusiva questão de
aparência física, como é o caso de dona Elis que aos 45 anos “malha horrores”
para ter um corpo perfeito; ou ainda no comportamento de uma Daniela
Gismontini, bela, jovem e talentosa repórter de Tevê que passa horas e horas a
fazer caras e bocas no Instagram só para angariar seguidores.
A tal da modernidade líquida, (termo cunhado por
Zygmunt Bauman que caracteriza a sociedade atual pela sua crescente
superficialidade, liquidez, volatilidade e fluidez), engoliu e solapou os
próprios valores com os quais poderíamos estabelecer a relações morais
necessárias ao amor humano. Vivemos uma espécie de “secularização erótica” onde
o desejo vai racionalizando-se para atender a uma demanda de mercado,
constituindo-se em impulso aquisitivo. Estamos em plena vigência de uma
perversão aceita e incentivada a torto e a direito (uma perversão flexível e
silenciosa), via dissociação e simplificação produzidas pela montagem das
aparências e simulacros. Dissociação e simplificação encontradas na principal
expressão sintomática da perversão, a saber, o fetiche, ou seja, esta
propriedade ou esta função que permite transformar o outro em objeto inanimado
(meio de gozo para meus fins) e reversamente o objeto em outro animado (fim
para o qual todos os meios se justificam). Estamos mesmo em uma barafunda
existencial.
Para aqueles que ainda não se deram conta da brutal
distinção entre as palavras louco e perverso, e antes da conclusão do texto,
sejamos ainda mais explícitos. Há distinção sim, entre uma e outra palavra:
Louco é aquele cujo comportamento ou raciocínio denota algumas alterações
patológicas mentais; seus atos e palavras parecem extravagantes, desarrazoados.
Está sempre flanando e contatando seu mundo interno. Já o perverso não aceita a
castração nem a frustração, atua com atitudes impulsivas e de grande alarme,
buscando a notoriedade e a visibilidade que o poder confere, mesmo que tenha de
adotar práticas estranhas e deliberadamente perigosas na tentativa de submeter
o outro ao seu desejo, ainda que leve tudo à derrocada e sem qualquer
sentimento de culpa ou remorsos. Segundo os estudiosos da matéria, tal
comportamento estrutura-se sobre uma vontade explícita de transgredir a ordem
natural das coisas, de perturbar a norma social, de modo a garantir seu poder
ou crescimento. Trata-se, para além da questão mental, de um fenômeno social,
físico, político e estrutural.
Finalmente, vale referir duas frases que aparecem
no livro e que nos fazem pensar em profundidade. Uma delas sentencia: “para
tudo se dá um jeito, menos para a morte.” P. 78. O Big Bang que
nos colocou nessa bolinha de barro que é o planeta Terra (Deus não, que até a
ideia de Deus à essa altura já foi apropriada por outras tantas perversões
religiosas), ainda continua a deter as chaves dos grandes enigmas da vida e da
morte... A segunda frase; “Só vive para sempre a morte”, sentença que aparece
nas páginas 42, 90, 102 e 104 e, em que pese o desfecho trágico e surpreendente
do último capítulo ou conto – como queiram, faz-nos pensar sobre o significado
dessa palavrinha estranha e mítica. “Ouroboros”, é a figura de uma cobra a
engolir o próprio rabo e, para além de estar ostensivamente tatuada, entre os
peitos de uma personagem, a repórter Daniela Gismontini, que muito
provavelmente nem imagina o que significa aquela imagem muito engraçadinha e “super
fashion” de uma cobra engolindo a si mesma, é antiquíssimo símbolo
mitológico de origem grega. Há interpretações que contemplam a serpente
que engole a própria cauda e forma um círculo a simbolizar o ciclo da vida, a
mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, e em última
instância, a renovação urgente do humano ao emergir para um outro nível de
existência simbolizado pelo círculo. Aí está, portanto, o passo que insistimos
em não dar...
Para comprar o livro:
Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com
Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado, À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.