Por Milton Rezende
Como
em turvas águas de enchente,
Me
sinto a meio submergido
Entre
destroços do presente
Dividido,
subdividido,
Onde
rola, enorme, o eu morto,
Eu morto, eu morto, eu morto.
Árvores
da paisagem calma,
Convosco
– altas, tão marginais! –
Fica
a alma, a atônita alma,
Atônita
para jamais.
Que
o corpo, esse vai com o milton morto,
Milton morto, milton morto, milton morto.
Eu
morto, eu descomedido,
Eu
espantosamente, eu
Morto,
sem forma ou sentido
Ou
significado. O que foi
Ninguém
sabe. Agora é milton morto,
Eu morto, milton morto, boi morto.
Com um berço nas costas
a uma
igreja, lembrei-me de ter visto
um velho que
levava às costas isto:
um caixão de
defunto”.
Alphonsus de
Guimaraens (1870-1921).
Depois
de muitos anos,
tentando
ainda me livrar
das
marcas do passado
fui
ao cemitério retirar
os
ossos do meu amigo.
Lembro-me
de ter deixado
uma
pedra em formato de
concha,
sob a qual estavam
os
seus objetos pessoais e
toda
a minha lembrança.
Era
meia-noite no relógio
da
igreja e um velho sentado
cochilava
com a sua carcaça
de
quem estava prestes a partir
e
abandonar de vez a praça.
Antes,
porém, seria necessário
àquele
velho feio e deformado
atravessar
a ponte de concreto
armado
e alcançar o outro lado,
onde
não havia nada além do pátio.
Surpreendi
o velho em sua travessia
quando
eu vinha vindo em sentido
contrário
e voltando dos bares que
estavam
situados na margem oposta,
onde
a vida era só queixa e desamparo.
O
homem trazia em suas costas
uma
caixa de madeira envernizada
e
cheia de alças de metal dourado,
semelhante
aos caixões que eu via
expostos
na porta da casa funerária.
E
perguntei-lhe, já meio bêbado,
o
que ele carregava nas costas
e
se era pesado – disse-me então
e
sem olhar para o meu lado,
que
ia levando apenas o seu leito.
De
súbito, ocorreu-me o fato
e
a lembrança que me levara ali:
desenterrar
os restos mortais
do
meu amigo, depois de passados
alguns
anos, conforme combinado.
Mas
não sei se fui ao lugar errado:
o
certo é que encontrei apenas,
na
escuridão da casa dos mortos,
somente
uma velha caixa de amianto
e
pedaços de tubos galvanizados.
Do livro Uma Escada que Deságua no Silêncio
Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.