Por Sinvaldo Júnior
Necrológio, de Victor Giudice, é uma coletânea de contos que desafia as convenções literárias: com uma linguagem experimental e imagens impactantes, o autor explora temas como a alienação e a exploração humanas, a morte, a violência e a crueldade humana, sem poupar detalhes e, ao mesmo tempo, sem cair na trivialidade.
A obra, em sua primeira edição (1972), começa inovando já na capa, onde inicia o primeiro conto, “O arquivo”, que continua nas primeiras folhas (folha de guarda e folha de rosto), sem paginação, até o título da obra. Só então – após esse primeiro conto curto – o livro, como tradicionalmente o conhecemos, aparece: folha de rosto, ficha técnica, dedicatória, epígrafe e índice. Por ser tão incomum, contraditoriamente, esse detalhe pode passar despercebido para alguns leitores.
Os treze contos que compõem o livro são narrativas experimentais que exploram novos ritmos, vocabulários e estruturas. Victor Giudice brinca com a linguagem, justapondo vocábulos, sons e sinais gráficos, criando efeitos surpreendentes e poéticos. Suas histórias, repletas de humor ácido e sarcasmo, revelam as hipocrisias e as taras da gente culta e as humilhações pelas quais passa a ralé brasileira. Necrológio exige certa coragem e disposição do leitor (sobretudo do de hoje, tão sensível...), já que trata de assuntos espinhosos de maneiras bastante incomuns. Cada conto é uma experiência única, acredite.
Em “O arquivo”, conto mais conhecido da coletânea e do autor, o protagonista é minúsculo (joão) e se mostra sempre passivo (satisfeito?, cegamente alienado?) com as reduções de salário pelas quais passa durante toda sua vida, resultado de uma dedicação exemplar como empregado (“Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso”). As constantes promoções de joão são, na verdade, despromoções (e o narrador observador evidencia esse fato através de uma carga irônica que não passa despercebida), até resultar em sua maior promoção: o direito de joão pagar para trabalhar!
O espaço é outro elemento importante na construção da narrativa: a história se passa, maiormente, no escritório onde joão trabalha; no entanto, à medida que é “promovido”, ele vai se mudando para lugares mais distantes, até “não ter mais problemas de moradia”, pois passa a viver nos campos. joão não perde apenas seu salário, mas perde também sua dignidade, sua individualidade, sua personalidade, sua humanidade. “O arquivo” é um conto curto e potentíssimo.
Em época de Reforma Trabalhista, sancionada em julho de 2017, e seus efeitos mais diretos (menos descanso diário, menor poder de negociação com o patrão, perda de direitos, aumento da jornada de trabalho, menores salários, etc.), a vida de joão é a vida de vários joãos espalhados pelo Brasil, ora sentados em suas motos ou em frente aos computadores em suas casas, ora sem almoçar, ora se arriscando em altas velocidades por uma empresa que não o emprega, porque ele é seu “próprio patrão”. O resultado da coisificação constante de joão é sua transformação em um objeto irrelevante: um arquivo de metal. A crítica subjacente à história de “O arquivo” é óbvia: à exploração e à alienação do trabalhador no sistema capitalista, mas feita de tal forma que toda obviedade desaparece no enredo de uma linguagem saturada de significações.
Tudo em Necrológio é fantasticamente estranho (ou estranhamente fantástico) e, ao mesmo tempo, direto: “O único acontecimento importante na vida de Bebé foi o assassinato de Tia Sinepryza: ele o cometeu” – aqui, no início do conto “Sinephryza”, temos algumas informações cruciais para o enredo: o nome dos dois protagonistas e o fato central. Depois, o leitor se envereda pela imaginação transbordante e pelo colorido verbal do autor, que se utiliza da caricatura, do fantástico e da metamorfose para criticar uma sociedade em crise, marcada pela ditadura militar (à época), pela alienação (desde sempre no Brasil?) e pela morte (o fim – antecipado – de todo ser brasileiro).
Não que Victor Giudice fale, explicitamente, do Brasil em Necrológio. “Oz gueijos”, por exemplo, narra a reunião de um grupo de amigos que se deliciam com queijos franceses enquanto conversam sobre assuntos variados, como arte, filosofia, política e cirurgia plástica. O conto é uma sátira à alienação e à futilidade da elite cultural, que se mostra incapaz de perceber a realidade do país e de si mesma. O autor utiliza recursos linguísticos como a repetição (“Ele, assim ele. Ela, fosse ela, vida em voltas envoltas...”) e a junção de palavras (“Marginalimagda”, “amiguinimigas”, “maridificando”, “sóporquês, etc.”), entre outros, para criar um efeito cômico e crítico. O título do conto é uma deformação da expressão “os queijos”, que remete ao sotaque francês e à pretensão dos personagens, que não possuem nome próprio (Homem Gordo, Mulher de Branco, Homossexual, Dama Obesa, Pintora Baiana, Moça Magra), justamente a fim de acentuar a sua superficialidade.
“In perpetuum” é outro conto da obra que dialoga, tematicamente, com “O arquivo”: Debi Mediocriz, o protagonista, vive uma vida automática, indo da casa para o trabalho, do trabalho para a casa, com poucas alterações, perpetuamente, como antecipam o título e o início da história:
É sempre assim?
Sempre.
A campainha nunca chega a tocar?
Nunca.
As repetições (“...um gosto de véspera na boca. Da boca ao jornal da véspera. Da cama à cadeira da véspera, apanhando a roupa da véspera, indo ao banheiro da véspera, urinando a urina da véspera, lavando o rosto da véspera, escovando os dentes da véspera, penteando os cabelos da véspera, voltando ao quarto da véspera, guardando o pijama.”), os neologismos (“vespera-se”, “atelogos”, “acenantes”, “passantes”, etc.), mais alguns recursos não tradicionais à narrativa (como espaços maiores em início de parágrafos; frases sem ponto final e frases sem final; frases entre parênteses para reforçar uma ironia), juntos, contribuem para a construção da história que está sendo contada: a de um ser humano que, de tanto repetir as mesmas ações (“É sempre assim? Sempre.”), parece mais um zumbi.
Debi (não sabemos se é homem ou mulher, o que não importa), além de dormir e trabalhar, compra (pendura) uma xícara de café com leite e um pão com manteiga, um maço de cigarros e uma caixa de fósforos para, fumando o primeiro cigarro do dia, ir esperar o ônibus no qual irá em pé, mãos no balaústre, espiando a revista do passageiro sentado:
“Mas só saltou dois anos depois. No centro da cidade, andando cinco minutos num passo calmo até chegar ao banco: um edifício cinzento com portas de ouro.”
E assim, nesse automatismo (assinar o ponto, guardar o blusão azul no armário, vestir uma camisa amarelada, acenar para os colegas, sentar-se no trabalho, tirar da gaveta um monte de fichas brancas), Debi vive, tentando achar a diferença de uma conta que nunca fecha (“Logo que passaram cinco anos, Debi Mediocriz interrompeu a conferência e se dirigiu ao chefe: __ Ainda nada. Podemos almoçar?”). É o exagero e o fantástico aqui, novamente, utilizados como recursos para criticar uma vida sem sentido, a vida das cidades grandes, a vida sufocada em um sistema de produção e consumo que consome toda nossa energia, no decorrer dos anos, e tudo que um dia eram sonhos e desejos. O único momento de beleza na vida de Debi ocorre quando “Num instante, o jornal caiu no chão, pois alguém assobiava uma canção desconhecida” – depois, continua a desdormir o maldormido e a desligar o despertador, in perpetuum.
“Curriculum mortis” é um conto curto sobre os pensamentos e as frustrações de Gafilhão de Saburgo III. Apesar do nome pomposo, Gafilhão é um cidadão urbano, morador do Rio de Janeiro, preocupado com a dívida que possui com Anacleto Meglianti, agiota e amante de sua esposa, Paupéria. A história alterna entre seus pensamentos e vontades (de matá-los, por exemplo), apresentados entre parênteses e em minúsculas, e as ações, apresentadas de forma convencional, com diálogos, travessões, pontos finais em final de frase, etc.:
__ Anacleto é agiota.
__ Um miserável.
__ Não, Gaf. É agiota. Vive disso.
“Pôquer”, outro conto curto, é uma história de amor e humor, de um personagem-narrador que, ao ir num domingo visitar sua amada, precisa assistir a um jogo de pôquer entre o pai, o tio, o avô e Auriflor: “Sendo assim, aceitei o convite: Auriflor era uma incongruência chovendo fetiches em meu deserto”.
Tanto “Curriculum mortis” quanto “Pôquer”, embora não tenham a mesma verve crítica de outros contos da coletânea, merecem ser apreciados por conta da linguagem experimental e das histórias engraçadas/estranhas que proporcionam. A estranheza é compensada, em Giudice, com uma história bem escrita, com começo, meio e fim bem definidos.
Necrológio é um
exemplo de como Victor Giudice domina a arte de contar histórias poderosas e
envolventes, capazes de prender o leitor do começo ao fim e deixá-los
impactados por muito tempo mesmo depois de fechado o livro. Tão impressionante
quanto desconhecido pelo grande público, desafia as convenções e convida a
refletir sobre a vida, a morte e a complexidade da condição humana. Uma leitura
intensa e uma
obra vanguardista, Necrológio faz bem à literatura de um país. É um
livro que merece ser conhecido, (re)lido e estudado, pois mostra o papel do escritor
como artífice de sua própria época a partir da linguagem (e não da sociologia
ou da política travestida de literatura), capaz de denunciar, com eficácia, os
males de uma sociedade desumanizada.
Sinvaldo Júnior
é professor de ensino médio, pesquisador acadêmico e revisor de textos (Textifique
Soluções em Textos). Publicou diversas
resenhas, artigos de opinião e artigos acadêmicos sobre leitura e literatura,
com foco em obras e autores brasileiros. É admirador de Carlos
Drummond de Andrade, Campos de Carvalho e
José Saramago. Mora em Uberlândia-MG.