Por agner nyhyhwhw
Alexandre Mendes era um inconformado. Esse inconformismo já pode
ser sentido de cara no contundente texto "Mínimo", que abre o
livro:
"Lambe logo o meu chão,
Meu escravo; desgraçado
Deixa tudo bem limpinho,
porque eu pago seu salário"
Aqui temos bem nítida a crítica sobre as relações trabalhistas
costumeiras: é a escravidão moderna, a escravidão assalariada. Esse tema é um
dos mais presentes na obra de Alexandre, retratado de forma visceral ou com
inspirado sarcasmo em textos como “Ao patrão, com carinho”, “Salário”, “A
ficção imita a realidade”, “Colisão de mentes” ou “Brêiqui de rullis”.
As instruções do seu patrão:
. Senta aqui e escuta meu sermão do dia.
. Sorria sempre para as tarefas de adulto que lhe obrigamos a executar.
. Conforme-se com o salário de criança que nós lhe pagamos.
Brêiqui de rullis
A escravidão histórica colonial também é tema de textos como
"Acaso". Alexandre mostra que a escravidão continua, os escravos
modernos seguem apanhando, seja do patrão, seja da polícia, seja da máquina
produtiva que não pode parar, seja da indiferença.
lá jazia o defunto
-Era só um vagabundo!
rabecão já vai chegar
Um cara
O cotidiano da periferia, ou daquelas pessoas marginalizadas e
sabotadas pelos detentores do poder, são assuntos frequentes. Como em
"Cocôtidiano", cujo título já diz tudo. Ou em “No limite”, “Tropa de
elite”, “Perdi o sono”, “Cálice”, “Bar da esquina”, “A queda”, “Meia hora”,
entre outros.
"lá falta concreto
esgoto e dente"
Seu Manel
"Estamos com medo. Espero que encontrem
logo o corpo."
Tive medo essa noite
Em "O crime está vencendo?”, evidencia que a divisão da
sociedade em vencedores e perdedores é uma grande falácia. Até mesmo a situação
da polícia, soldados e demais guardiões da pátria e da ordem, é vista com
crítica, mas também com humanidade, reconhecendo a perversa e famigerada
estratégia de dominação de dividir e conquistar, colocando sabotado contra
sabotado.
“Anteontem era zagueiro
Ontem, era mau sujeito
E hoje, apenas estatística”
Condecoração de honra
“A polícia é mau paga e às vezes desconta suas
frustrações na gente. Tudo que eles querem é ouvir "sim, senhor" e
"não, senhor".”
Recomendações de um macaco velho
As temáticas na obra de Alexandre são grandes, passando por
relações familiares, que nem sempre são exemplares ou amorosas, como a
conturbada relação entre pai e filho vista em “Di pedra” e “Papai”;
"Não sobrou nada,
caro estranho, nada,
nada pra você"
Di pedra
e as relações com a natureza e o mundo animal, retratadas sempre
com empatia.
"(Adeus, breve nos veremos!)"
Uma vida (quase) sem vida
"Homens por cima
Animais por baixo
Mas não tentem provocá-los
dentro de seu próprio espaço"
Animal Planet
Fruto de uma visão de mundo ampliada de alguém que foi camelô,
cobrador de ônibus, professor de história, entre outras funções, além de
vivenciar a realidade de comunidades periféricas. Alguém que, não apenas
estudava o mundo, mas o observava de perto, em sua múltiplas facetas, com
respeito e humildade. E, apesar do olhar crítico, conseguia interagir com uma
contagiante simpatia e bom humor, características também marcantes em sua
obra.
"Entrou no coletivo; deu um arroto e pulou a roleta: Levou um
esporro do cobrador. Puxou 50 pratas do bolso e pagou a passagem, dizendo ao
funcionário que ficasse com o troco. - Hoje, vamos quebrar a rotina!"
Brêiqui de rullis
"Assinval despejara todos os seus herdeiros sobre o bife do
bundão da mesa dez."
O troco da gorjeta
O mundo, as pessoas, a natureza, e as interrelações disso tudo em
nossa confusa sociedade é retratado com admirável empatia e criatividade, como
em "Glória", "Belo bela vista" ou "Terra".
O inconformismo reverbera como uma revolta criativa e
construtiva.
"Ergueu a mão esquerda para o alto, tentando
alcançar as estrelas, no ápice do esforço físico. 'Eu sou a
natureza!'-Gritou."
Terra
As reflexões se estendem sobre os sentidos da vida e da morte,
conflitos existenciais, o ser e o não ser, a verdade e o vazio. Reflexões estas
que podem não apenas desconstruir o saber absoluto, como também a própria
linguagem formal ou até a poética convencional. Temos assim "Lindo'', um
subversivo poema cíclico de 11 páginas. Temos também "Irmãos
Metralha", em que a crítica social vem junto à subversão das famigeradas
conjugações verbais, tão entubadas nos alunos por anos e anos no ensino
convencional das escolas. "A revolta das palavras'' é outro exemplo de
subversão linguística, de forma bem humorada. A contundência, tanto da ideia,
como do linguajar poético, pode ser sentida em "Seu Manuel".
"O sábio que soube demais
geme e chora
tentando voltar atrás
descobrindo que a verdade aprisiona
…
dentro da sua verdade
que os outros sábios chamam de nada"
Sem açúcar
"universo paralelo
FAÇA-SE PRESENTE"
Fé
"Vê como é o destino?
Um dia é otimismo
crença em contos
verdade mau contada
outrora é escuro abismo,
e o fim da linha revela o nada."
GG Allin
"Pra que o pra quê
de tudo isso?
Não sei… Quando eu comecei a tentar entender, já era desse jeito…"
[?]
"eu sei quem é você
então, por favor, me ajude
e me diga, afinal de contas:
quem sou eu?"
[??]
Estas reflexões são tão fortes na obra de Alexandre que ele até
criou o filósofo Nihildamus.
Obra que, afinal, era também vasta como seu coração.
"(A minha cara é bem feia, mas o meu coração é do tamanho de
um planeta!)"
Ah!
Este livro traz poesia e prosa, mas Alexandre também fez
ilustrações, quadrinhos, zines, e colaborações em projetos diversos, material
que ainda há de render outras coletâneas.
Alexandre foi um artista que nos deixou antes do que deveria ser,
mas seu legado permanecerá.