21 de mai. de 2023

'Boi descomedido' e 'Com um berço nas costas'


Por Milton Rezende

Boi descomedido

(Manuel Bandeira, 1886-1968), Opus 1  

Como em turvas águas de enchente,
Me sinto a meio submergido
Entre destroços do presente
Dividido, subdividido,
Onde rola, enorme, o eu morto, 

Eu morto, eu morto, eu morto. 

Árvores da paisagem calma,
Convosco – altas, tão marginais! –
Fica a alma, a atônita alma,
Atônita para jamais.
Que o corpo, esse vai com o milton morto, 

Milton morto, milton morto, milton morto. 

Eu morto, eu descomedido,
Eu espantosamente, eu
Morto, sem forma ou sentido
Ou significado. O que foi
Ninguém sabe. Agora é milton morto, 

Eu morto, milton morto, boi morto. 


Com um berço nas costas

 “Ontem, à meia-noite, estando junto
a uma igreja, lembrei-me de ter visto
um velho que levava às costas isto:
um caixão de defunto”.
Alphonsus de Guimaraens (1870-1921). 

Depois de muitos anos,
tentando ainda me livrar
das marcas do passado
fui ao cemitério retirar
os ossos do meu amigo.

Lembro-me de ter deixado
uma pedra em formato de
concha, sob a qual estavam
os seus objetos pessoais e
toda a minha lembrança. 

Era meia-noite no relógio
da igreja e um velho sentado
cochilava com a sua carcaça
de quem estava prestes a partir
e abandonar de vez a praça. 

Antes, porém, seria necessário
àquele velho feio e deformado
atravessar a ponte de concreto
armado e alcançar o outro lado,
onde não havia nada além do pátio.

Surpreendi o velho em sua travessia
quando eu vinha vindo em sentido
contrário e voltando dos bares que
estavam situados na margem oposta,
onde a vida era só queixa e desamparo.

O homem trazia em suas costas
uma caixa de madeira envernizada
e cheia de alças de metal dourado,
semelhante aos caixões que eu via
expostos na porta da casa funerária.

E perguntei-lhe, já meio bêbado,
o que ele carregava nas costas
e se era pesado – disse-me então
e sem olhar para o meu lado,
que ia levando apenas o seu leito.

De súbito, ocorreu-me o fato
e a lembrança que me levara ali:
desenterrar os restos mortais
do meu amigo, depois de passados
alguns anos, conforme combinado.

Mas não sei se fui ao lugar errado:
o certo é que encontrei apenas,
na escuridão da casa dos mortos,
somente uma velha caixa de amianto
e pedaços de tubos galvanizados.

Do livro
Uma Escada que Deságua no Silêncio

Milton Rezende, poeta e escritor, nasceu em Ervália (MG), em 23 de setembro de 1962. Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF, depois morou e trabalhou em Varginha (MG). Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Escreve em prosa e poesia e sua obra consiste de quatorze livros publicados. Tem um site e um blog.