12 de mai. de 2023

Ainda não


Por Marina Pereira Dantas

Em mais um raiar do sol, mais uma mesa posta, um café passado e o burburinho de toda manhã. Marido saído do banho faz o aroma de lavanda brigar com o do café, enquanto o barulho da louça duela com o som do despertador do quarto das crianças. Até o momento em que a cozinha é preenchida com a desordem de vozes, pedidos e chamados de mãe e amor. Nesse espaço, vou servindo uma xícara, colocando um cuscuz no prato, cheirando um quengo e tendo meu corpo escalado por algum serzinho parido por mim. Estes momentos me fazem sentir viva, com sentido e completamente preenchida.

E de ter certeza de que sou amada.

Logo depois vem o vazio. Eu: completamente oca e solitária.

Isso me traz um tremor das entranhas, um gelo como nenhum outro sentimento. Recorro ao celular, ao fogão, ao ferro; após esquentar demais, pulo para a pia, cato a vassoura e sigo para o banheiro. É o momento da chegada de todos. Volta o movimento de mesa, escalada, mãe aqui, amor acolá e eu me esparramo pelos cômodos, por cada necessidade alheia e me sinto novamente bem, inteira, preenchida. Lembro dos dizeres da minha avó: mente vazia é oficina do diabo.

Então, logo após cada um seguir com seus afazeres, ligo a TV e me ponho ao celular até o retorno de todos e o derramamento de mim. Ver aquela algazarra, aqueles rostos, perguntas e chamamentos reitera a certeza do quanto sou amada, querida, completa e sigo fielmente os caminhos de Cristo.

A família é a base de tudo. É para ela e por ela que existo. Minha fé, minha santinha... Tenho que lembrar de trocar as flores do altar, comprar velas e um terço novo. Falando nisso, hoje sai o resultado do Enem de João. Fico feliz por meu filho seguir seu caminho e ao mesmo tempo temo pelo vazio dessa casa. Meu marido vive trabalhando, passo o dia só, e o que me entretém são as horas de aperto. Ainda assim, ver meu filho formado, um doutor, é algo de muito orgulho para uma mãe.

Seria bom para ele sair dessa cidade. Mesmo assim meu coração fica miúdo e vai bater dentro dessa casa tão grande, sozinho. Tem meu marido, é fato, sendo que é aquela coisa: de casa para o trabalho, do trabalho para casa; em casa é na TV, cerveja e celular. Não estou reclamando, sabe? Até porque tem gente em situação pior e eu vivo por minha família. Mas um passeio não faz mal a ninguém, anima o espírito. O padre mesmo, ele sempre bebe o sangue de Cristo. Um goró aqui outro acolá, é bom, faz bem pra alma. Pena que meu marido ficou velho e abusado, sai com os amigos e é isso. Eu fico aqui, locada como móvel. Não reclamo não, é meu dever, minha escolha, minha família, eu apenas quero parar esses tremores pelo corpo.

É bom esse quentinho, faz eu me sentir viva, sabe? Eu me empenho tanto por eles e agora vou ser deixada? Ficar só eu e o velho. Gosto não, gosto do agito. Ah! Quando eu era nova, não tinha isso, batia alguns forrós, fui candidata em concursos de beleza, organizei grupo de jovens e sempre tinha algo para fazer.      

Tudo que tenho vai embora. Tanta dedicação e agora ficarei aqui, presa. Faço e fiz tudo por ele e agora simplesmente vai embora, me deixar com esse bode velho. Por outro lado, ao menos é para virar doutor, alguém importante. Só conseguiu porque eu cuidava de tudo. A vitória seria minha também, mas a distância é o que prejudica.

De toda forma, ele ainda não passou.

Marina Pereira Dantas é advogada e contista nas horas vagas. Questiona tudo o que respira ou o motivo de não fazê-lo. Gostaria de saber um pouco sobre tudo e ter um mínimo de muitas experiências possíveis e cabíveis em uma existência, para assim poder ocupar sua breve vida de poeira estelar sobre a Terra, com algo grandioso, ainda que saiba a impossibilidade desse ato, porque o bom mesmo está na pequenez de cada dia, encontro, conto e distância. Alguém que busca unir uma mesmice a algo extraordinário em um mesmo segundo, para num outro, largar tudo.