Por Marina Pereira Dantas
Em mais um raiar do sol, mais uma mesa posta, um café passado e o burburinho de toda manhã. Marido saído do banho faz o aroma de lavanda brigar com o do café, enquanto o barulho da louça duela com o som do despertador do quarto das crianças. Até o momento em que a cozinha é preenchida com a desordem de vozes, pedidos e chamados de mãe e amor. Nesse espaço, vou servindo uma xícara, colocando um cuscuz no prato, cheirando um quengo e tendo meu corpo escalado por algum serzinho parido por mim. Estes momentos me fazem sentir viva, com sentido e completamente preenchida.
E
de ter certeza de que sou amada.
Logo
depois vem o vazio. Eu: completamente oca e solitária.
Isso
me traz um tremor das entranhas, um gelo como nenhum outro sentimento. Recorro
ao celular, ao fogão, ao ferro; após esquentar demais, pulo para a pia, cato a
vassoura e sigo para o banheiro. É o momento da chegada de todos. Volta o
movimento de mesa, escalada, mãe aqui, amor acolá e eu me
esparramo pelos cômodos, por cada necessidade alheia e me sinto novamente bem,
inteira, preenchida. Lembro dos dizeres da minha avó: mente vazia é oficina
do diabo.
Então,
logo após cada um seguir com seus afazeres, ligo a TV e me ponho ao celular até
o retorno de todos e o derramamento de mim. Ver aquela algazarra, aqueles
rostos, perguntas e chamamentos reitera a certeza do quanto sou amada, querida,
completa e sigo fielmente os caminhos de Cristo.
A
família é a base de tudo. É para ela e por ela que existo. Minha fé, minha
santinha... Tenho que lembrar de trocar as flores do altar, comprar velas e um
terço novo. Falando nisso, hoje sai o resultado do Enem de João. Fico feliz por
meu filho seguir seu caminho e ao mesmo tempo temo pelo vazio dessa casa. Meu
marido vive trabalhando, passo o dia só, e o que me entretém são as horas de
aperto. Ainda assim, ver meu filho formado, um doutor, é algo de muito orgulho
para uma mãe.
Seria
bom para ele sair dessa cidade. Mesmo assim meu coração fica miúdo e vai bater
dentro dessa casa tão grande, sozinho. Tem meu marido, é fato, sendo que é
aquela coisa
É
bom esse quentinho, faz eu me sentir viva, sabe? Eu me empenho tanto por eles e
agora vou ser deixada? Ficar só eu e o velho. Gosto não, gosto do agito. Ah! Quando
eu era nova, não tinha isso, batia alguns forrós, fui candidata em concursos de
beleza, organizei grupo de jovens e sempre tinha algo para fazer.
Tudo
que tenho vai embora. Tanta dedicação e agora ficarei aqui, presa. Faço e fiz
tudo por ele e agora simplesmente vai embora, me deixar com esse bode velho.
Por outro lado, ao menos é para virar doutor, alguém importante. Só conseguiu
porque eu cuidava de tudo. A vitória seria minha também, mas a distância é o
que prejudica.
De
toda forma, ele ainda não passou.
Marina
Pereira Dantas
é advogada e contista nas horas vagas. Questiona tudo o que respira ou o motivo
de não fazê-lo. Gostaria de saber um pouco sobre tudo e ter um mínimo de muitas
experiências possíveis e cabíveis em uma existência, para assim poder ocupar
sua breve vida de poeira estelar sobre a Terra, com algo grandioso, ainda que
saiba a impossibilidade desse ato, porque o bom mesmo está na pequenez de cada
dia, encontro, conto e distância. Alguém que busca unir uma mesmice a algo
extraordinário em um mesmo segundo, para num outro, largar tudo.