Por Glauco Mattoso
Uma attitude contemplativa, a partir do caes,
deante da imensidão maritima, me remette às canções de Milton Nascimento,
especialmente na epocha do album Clube da exquina, mas não só. Tambem me
remette ao immortal Otis Redding na canção The dock of the bay.
Litterariamente, a referencia mais marcante foi à Ode maritima de
Fernando Pessoa. Entretanto, ja que a philosophia e a escatologia caminham
junctas, tive que pensar como quem está defecando. Dahi o poema abbaixo, que sahiu
no livro Ode ao aedo e outra balladas.
Ode nauseabunda (1/7) [8155]
(1)
Sentado, pensativo fico, à toa,
tal como Otis ou Milton Nascimento,
tambem philosophando, qual Pessoa,
à beira do caes onde estou, ao vento
maritimo, ou à beira donde echoa
ruido de navio: o pensamento.
(2)
O mais bello horizonte que uma boa
visão possa alcançar! O olhar attento
poder dos transatlanticos a proa
ou poppa distinguir! O movimento
notar até das nuvens, me magoa
não possa, a mim, caber neste momento!
(3)
Mas posso viajar, ja me appregoa
Pessoa, mentalmente e, si lamento
a physica cegueira, livre voa
o olhar da phantasia, quando tento
uns versos decorar, antes que doa
o ventre constipado, o cu no assento.
(4)
Ai! Quando ja concluo quasi a loa
que quero dedicar a algum evento
feliz, a um thema ameno, me resoa
o rhoncho intestinal, um flatulento
fedor pollue a brisa que a canoa
da lyra me arejava, e me appoquento!
(5)
Emquanto cago, finjo que caçoa
de mim meu inimigo mais cruento,
que é elle quem me caga, quem me zoa
da cara enlameada, que me aguento
debaixo do seu rego, até que roa,
como osso duro, o troço fedorento!
(6)
Deliro nesse quadro que se excoa
aos poucos da visão, voltando ao lento
compasso peristaltico. Destoa
o surto do que agora, somnolento,
figuro. Ja o tuphão uma garoa
virou. Estou tranquillo, cem por cento.
(7)
A atroz constipação sempre me enjoa
durante este descharte tão nojento
das fezes. Todavia, quem remoa
seus odios e exorcize um violento
impulso se refaz, como um Pessoa,
um Redding, ou um Milton Nascimento.
Glauco Mattoso é paulistano de 1951. Nos annos
1970 editou o poezine Jornal dobrabil e destaccou-se entre os poetas
"marginaes". Compoz mais de dez mil poemas ou de septe mil sonnettos
e assignou mais de cem livros de poesia, trez romances (um delles em
verso), trez volumes de contos, alem de chronicas, ensaios, um tractado de
versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção
esthetica às reformas cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto.
Mattoso perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe
ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a
cegueira, graças a um computador fallante. Seus ebooks saem pelo sello Casa de Ferreiro e seu blog traz mais informação.