Por André Ferrer
Em
vários textos, ao longo da sua obra, Ernest Hemingway cita a arte da pintura.
Nenhum desses momentos, entretanto, é mais eloquente a respeito das suas reais
intenções ao mencionar a pintura do que em um trecho do conto Escrever.
Aliás, uma das suas histórias menos conhecidas.
Em
Paris é uma festa, Hemingway fala de alguns dos vários pintores que
conheceu e, com a propriedade de quem viveu na Cidade Luz dos anos de 1920,
relaciona as soluções encontradas por aqueles artistas à sua própria arte, a
escrita. Trata-se de um livro de memórias. Nele, o autor relata os anos em que
vivera na França e era apenas um repórter norte-americano que aspirava, um dia,
tornar-se escritor. Paris é uma festa foi escrito na década de 1950 e só foi
publicado após a morte do autor.
Se
neste livro Hemingway gasta várias linhas com a tentativa de demonstrar o
quanto um escritor pode aprender com a pintura, no conto Escrever ele
atinge o objetivo com maestria. Sabe-se, claramente, que o autor valorizava a
personalidade como o único caminho para a inovação. Em nenhum outro texto, no
entanto, a experiência pessoal é tida em tão alto grau de importância em
relação ao ofício da escrita.
Por
exemplo, já no meio da pescaria (sim, o conto é sobre pescaria), fica-se
conhecendo os pensamentos do protagonista, Nick Adams.
Este,
mediante um discurso indireto livre, afirma que James Joyce sabia como Cézanne
pintaria aquela extensão de rio. E o pescador escritor lamenta: “Meu Deus, se
ele estivesse aqui para pintar. Eles morreram e isto foi mesmo o diabo.
Trabalharam durante a vida inteira e ficaram velhos e morreram.”
“Nick,
vendo como Cézanne faria a extensão do rio e o pântano, levantou-se e entrou na
corrente. A água estava fria e verdadeira.” Exato: uma sensação, a temperatura,
que é um argumento de autoridade capaz de sustentar uma proposição verdadeira.
Ora, mais Hemingway do que isso não existe.
Papa
gostava tanto de pintura (ou da relação entre pintura e escrita), que Thomas
Hudson – é claro, mais um dos seus alter egos – não é escritor, mas pintor.
Hudson é o protagonista do romance As ilhas da corrente, também uma
edição póstuma.
No
conto Escrever, que integra o volume The Nick Adams stories (As
aventuras de Nick Adams), lê-se ainda: ele (Nick Adams ou, de novo, o
próprio Hemingway) “queria escrever como Cézanne pintava.”
“Cézanne
começara usando todos os truques. Em seguida, destruiu a coisa toda e construiu
a coisa verdadeira.”
Com algum conhecimento de História, detectam-se pistas daquela grande ruptura nas artes, a emergência das vanguardas, enquanto a Belle Époque agonizava. Aquém disso, Hemingway aponta para aquela que constitui a maior obrigação de todo bom artista: o esforço de imprimir a sua personalidade na obra. Sob a pena de ser medíocre, o artista deve substituir velhos truques por novos truques. Seus próprios truques.
André Ferrer é escritor de contos e crônicas, farmacêutico e bioquímico. Deu aulas de Química em universidade e participou com seus textos nas antologias de contos A morte do outro lado da luneta e Grenzenlos, e da antologia Retire aqui a sua história, com colaboradores do coletivo Crônica do Dia.