6 de abr. de 2023

'A fúria do corpo' – entre a fome e a liberdade


Por Whisner Fraga

João Gilberto Noll (1946-2017) foi um escritor gaúcho, autor de várias obras importantíssimas de nossa literatura. O livro de estreia dele, O cego e a dançarina (Civilização Brasileira, 1980) ganhou o prêmio Jabuti daquele ano, despertando grande atenção do público leitor e também da crítica especializada. Escreveu livros emblemáticos, como Harmada (Companhia das Letras, 1993), A céu aberto (Companhia das Letras, 1996), Berkeley em Bellagio (Objetiva, 2002), entre outros.

Este A fúria do corpo (Record, 1981) é, certamente, o romance mais visceral de João Gilberto Noll. Não é um livro fácil, o escritor não faz nenhum tipo de concessão, sobretudo estética. É uma obra de linguagem transgressora, crua, ao mesmo tempo lírica, com parágrafos longos, que não dão muita trégua para o leitor. O tema é espinhoso, difícil, embora não esteja na ordem do dia. Não que seja um assunto datado, ao contrário, mas atualmente não atrai mais tanto interesse.

Narrado em primeira pessoa, o romance traz a história de um homem e de uma mulher, que não podem revelar seus verdadeiros nomes. Ambos vagueiam, miseráveis, pelas ruas do Rio de Janeiro. Não há um tempo exato em que a trama ocorre, mas podemos intuir que eles estão na fase final da ditadura. Há várias menções a este período, há sempre policiais por todos os cantos, espreitando, tentando manter a lei e a ordem, há outros indícios, também. O narrador avisa que o inimigo é quase onipresente, ele está espreitando em todos os lugares, é preciso ter cuidado.

O casal, portanto, não tem identidade, porque é perigoso ter um título, ser alguém, em uma época em que só a invisibilidade garante a sobrevivência. Ao mesmo tempo os próprios corpos devem conter as individualidades, é nos corpos que estão as virtudes, os corpos é que devem falar, consagrar o único bem que possuem: a vida, transubstanciada em um erotismo extremo, em uma sexualidade sem nenhum limite, sem nenhum preconceito. A única verdade possível só é revelada por meio da subversão.

O narrador e Afrodite, apelido escolhido para a companheira, procuram formas de sobreviver, o corpo não pode perecer, pois dele depende o amor. Ambos se prostituem, roubam, são violentados, presos. Mas revidam, quando necessário. Eles estão juntos e nesta mistura entre o sagrado e o profano, subvertem uma sociedade conservadora, míope para tudo o que não é umbigo. A partilha é possível na miséria, até na miséria existe a carne e ela lateja, às vezes de fome, mas sempre de desejo. Eles, os protagonistas, se aproximam muito do animalesco, almejam perder todos os sentidos, eles não podem enxergar a realidade, pois tudo estaria perdido.

Mas não é estranho um homem em situação de rua narrar de forma tão visceral, tão poética, tão profunda? Talvez até fosse, se João Gilberto Noll não fosse tão cuidadoso com a narrativa. Em determinado momento esse narrador deixa claro que veio de uma classe média e que possui conhecimentos que o credenciam à literatura.

Um tema transversal do romance certamente continua vigente: o apagamento social. Ainda que as duas personagens não queiram ser descobertas pela sociedade, elas também são ignoradas, neste círculo vicioso. Nesta obra de 1981, Noll traz um problema que só começou a ser estudado mais de dez anos depois: a aporofobia.

Os corpos passam a ser os protagonistas do livro, é preciso que eles, sem nomes, sem identidades, tracem suas histórias, seus roteiros. Ter um nome é um luxo e eles não podem com isso. Ambos continuam vagando pela cidade, resistindo, cada um tenta encontrar um meio de se apegar a alguma esperança, para depois se reencontrarem, porque o destino de ambos é a união de duas liberdades. Dois seres livres e sujeitos a uma nova ordem, a uma nova realidade. É assim que, neste romance, não sabemos quase nada do passado de ambos, o que é narrado, o que interessa é o presente e a construção dessas novas identidades.

O anonimato é também liberdade.


Livros podem ser enviados à Revista O Bule para serem resenhados. Caso se interesse, entre em contato: coisasprobule@gmail.com

 

Whisner Fraga (1971) é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros As espirais de outubro (romance, Nankin, 2007), Abismo poente (contos, Ficções, 2009), o que devíamos ter feito (Patuá, 2019), entre outros. Participou das antologias Os cem menores contos brasileiros do século, organizada por Marcelino Freire e Geração zero zero, de Nelson de Oliveira. Teve contos traduzidos para o inglês e alemão. É responsável pelo canal Acontece nos livros, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.