Ele abre a
loja preocupado, agoniado, aflito. Tem que pagar um extra ao contador que fez
artimanhas para sonegar os impostos mensais da loja. Precisa ter em caixa
também, dinheiro vivo para eventuais propinas com a fiscalização da Prefeitura
ou da Secretaria da Fazenda. “Tem que ser aos poucos. Vou agora mesmo remarcar
o preço daquelas bolsas Louis Vuitton fabricadas no Paraguai. Cem reais em cada
uma para começar está razoável”. Duas horas depois uma madame muito afetada e
escandalizada com o valor que lhe pedem pela bolsa, paga assim mesmo, exige
nota fiscal, e sai da loja pensando: “Vai sobrar mesmo para a diarista. Peço a
ela paciência, digo que as coisas estão difíceis, que estamos fazendo das tripas
coração para mantê-la lá em casa e etc., e ainda peço e recomendo discrição
absoluta e tal e tal. No final do mês acertamos tudo”. A Maria que está ansiosa
na casa da patroa esperando o pagamento da semana, ao saber do corte e do
adiamento, primeiro fica chateada, depois aborrecida, se atrapalha com o pano
de prato e deixa cair no chão uma taça de cristal. Os cacos vão escondidos para
o lixo sem fazer ruído. E quando lembra então dos compromissos a pagar hoje,
resolve não tirar as teias de aranha que se acumulam no teto da sala, e o
feijão; que se dane, vai salgado mesmo para a mesa na hora do almoço. “Oh Jesus
do céu!”. Maria vai ter que adiar o pagamento de trinta reais no mercadinho
onde comprara fiado, quarenta reais que a vizinha desfalcou do pagamento da
própria conta de luz para emprestar a ela quando o gás faltou na semana
passada, e mais trinta reais que ficou devendo no salão da última vez que tinha
‘feito’ o cabelo. Nesse mesmo dia houve a suspensão do fiado no mercadinho, e
houve quem ficasse sem comprar a crédito de caderneta. A luz da vizinha foi
cortada, e a dona do salão, com um mau-humor súbito e insuportável, acabou
queimando o couro cabeludo de uma cliente com o ferro de amansar cabelo.
Tudo isto
ficaria sepultado no esquecimento dos sofrimentos diários, sem nenhuma relação
entre si naquela favela em que Maria morava, não fosse o Zé pretinho, o filho
adolescente da vizinha que, ante o corte da luz, resolveu ir, “só mais uma
vez”, na boca de fumo vender umas pedrinhas de crack. O que decorreu poderia
induzir os que acreditam em tudo, àquele tal efeito borboleta da teoria do
caos. Uma teoria completamente amalucada segundo a qual, a resultante de
determinado cálculo quando passa a ser dado numérico de outro (e assim por diante),
influi em seu resultado. Segundo essa alucinação, o bater de asas de uma
simples borboleta poderia influenciar o curso natural das coisas e provocar
consequências de proporções inimagináveis. Quem vai acreditar numa maluquice
dessas? O certo é que Zé pretinho vendeu (e fumou também), umas tantas
pedrinhas. Chegou a levantar os cem reais que pagariam a conta da luz. Mas deu
azar. Azar é o nome. A polícia fez uma
batida surpresa na cracolândia. Correrias, pedradas, bombas de gás, gritaria,
empurrões, perseguições e tiros. Um acertou em cheio o peito do Zé
pretinho. Levado ao hospital veio a
óbito. A vizinha (mãe de Zé Pretinho), ficou sabendo do ocorrido pelo médico
plantonista. Após breve relato das condições em que ele “deu entrada”, o médico
concluiu: “... Um quadro como o dele, precisaria de certos recursos que
infelizmente não dispomos aqui, não deu tempo nem de transferi-lo... O governo
não tem liberado verbas para a compra de equipamentos, instrumental e material
cirúrgico e ficamos com a capacidade de atender muito limitada... Sinto
muito”. Nesse mesmo instante, aquele
lojista das bolsas Louis Vuitton ordenou a seu funcionário: “Hora de fechar as
portas. Amanhã teremos outro dia infernal pela frente. Que país é esse? Tenho
que matar um leão por dia para sobreviver.
Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor,
pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado, À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. O Touro do Rebanho (romance histórico) obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar (UBE). Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.