Por Albir José Inácio da Silva
Lando baixou os olhos do suplemento esportivo e viu que uma das guias estava frouxa. Amassou de susto o jornal, pegou a alça embaixo da perna e puxou as cordas com força. Três cães latiram, reclamando porque foram esfregados nos galhos do arbusto. Mas onde estava Ringo?
Lando correu até a borda do canal e olhou a água até onde a vista alcançou, olhou em volta e viu que ele desaparecera. Logo o Ringo!
Dona Honorina tinha duas grandes paixões na vida: os Beatles, mortos ou vivos, e os cães. Não qualquer cão — os seus cães: John, Paul, George e Ringo. Quanto aos Beatles, ouvia-os durante todo o dia e não lhe davam trabalho, a não ser apertar o play. Mas com os cães era mais complicado.
Na entrevista de emprego com Dona Honorina, Lando jurou paixão pelos animais, chorou ao lembrar seu gato falecido e disse que sempre sonhou com esse trabalho. A velha ficou encantada.
— Seu Lando, sei que o senhor tem amor pelos bichos, mas cuidado principalmente com Ringo. Além de desobediente, ele é atrapalhado e não tem medo de nada. Teve problemas no parto e foi abandonado pela mãe, o que deixou o pobrezinho cheio de traumas — exortou a senhora.
Acostumado a trabalhos pesados e ameaças de patrões, ele estava no céu com o novo emprego — quatro cãezinhos fofinhos que dormiam na cama da dona. Levava-os a passear duas vezes por dia, munido de sacos plásticos e garrafas de água. Três vezes por semana bebiam água de coco, que só podia ser comprada na barraquinha de confiança da Dona Honorina.
Obviamente ele não teria esse emprego se ela pudesse pessoalmente passear com seus bichinhos, mas o reumatismo não deixava. Lando era já a quarta tentativa de arranjar uma babá. A primeira foi embora porque gritou com George. O segundo resolveu cortar uma mecha do cabelo de John porque achou que atrapalhava sua visão. O terceiro comprou água de coco em barraquinha desconhecida, o que desarranjou o pobre Paul.
Dona Honorina não precisava saber, mas para Lando cachorro era cachorro, ele os acompanhava quando iam na direção certa e os arrastava quando cismavam de andar para outro lado. Não entendia de psicologia animal, de traumas e da necessidade de tratar esse assim e aquele assado. Jamais maltrataria ninguém, nem cachorros, mas entende que a educação passa às vezes por cascudo e beliscão.
Não podia dizer que nada o incomodava naquela história. Ele comprava ração, remédios, xampus, levava para consultas, banho e tosa no ‘pediatra’ — como dizia Dona Honorina — e sabia o preço de tudo. Sabia também que seu salário não cobriria meia semana de gastos dos totós. Mas era conformado, cada um tem no mundo o lugar que merece — meritocracia.
Mas e agora? Onde estava Ringo?
Lando arrastou o trio remanescente pelas calçadas, vagou por ruas e becos, perguntou a comerciantes, porteiros e transeuntes. Ganhava salário-mínimo, quanto custava um cachorro daqueles? Existe crime de abandono de cachorro como de criança? E se a velha morresse de desgosto, seria responsabilizado? Por que não conferiu as coleiras? Por que tinha de ler jornal?
Entrou no elevador social para desespero do porteiro. Suspendeu no colo os sobreviventes, desgrenhou os cabelos, acelerou a respiração e entrou na sala.
— Dona Hororina! O Ringo, sabe como são os meninos nessa idade, viu passar uma cadelinha, soltou-se da coleira, disparou atrás dela e desapareceu — foi o que Lando conseguiu arranjar.
Ela resfolegou um gemido, os braços caíram e a vista escureceu. Lando soltou os cães para socorrê-la, mas ouviu um latido e virou-se pra porta que tinha ficado aberta. O porteiro trazia Ringo no colo.
Antes que Seu Onofre falasse, Lando pegou o baterista, agradeceu, fechou a porta e emendou:
— Como eu dizia, Dona Honorina, Ringo desapareceu. Mas eu vasculhei o quarteirão e o achei num beco. Corri atrás dele com os outros no colo. Ele deu a volta e entrou aqui no estacionamento. Eu vim deixar os três para buscá-lo, mas Seu Onofre fez esse favor.
Dona Honorina respirava ainda com dificuldade quando Lando colocou Ringo no seu colo. Os outros se aninharam em volta. Ela olhou para o Lando — um herói.
Albir José Inácio da Silva é funcionário público e bacharel em Direito. Escreve contos e crônicas. Escreve contos porque gosta de histórias e crônicas porque gosta de olhar a cidade. Colabora com o coletivo Crônica do Dia desde 2008. Faz parte das antologias Acaba não, mundo (Patio, 2011) e Retire aqui a sua história (Sinete, 2022).