16 de mar. de 2023

a tentação consagrada


Por Whisner Fraga

ele se detém, sonda as lesões no cartaz, dobras escavam as cores das folhas, uma foto amanhada na vitrine, driblando o desejo desfocado, um rockstar com uma guitarra, o holofote despejando uma claridade maleável, etérea, como se ele fosse o líder de algo vicioso e, talvez por isso mesmo, cobiçado: o protagonista, o compositor, o ídolo e, abaixo dos pés, ou melhor, debaixo das botas, a frase emoldurada: não desista dos seus sonhos, e ele pescou nas memórias recentes os poucos encontros virtuais com os netos, as raras idas ao supermercado, a tevê balbuciante no início da noite, os cochilos no sofá, nem o porteiro interfonava sobre alguma encomenda, mas agora pode entrar na loja e bisbilhotar os equipamentos, arriscar qualquer nota, sondar os preços, a possibilidade de aulas intensivas, tanto tempo à disposição, ainda que o corpo lhe negue a obediência, ainda que a cabeça empaque em pequenos desafios, ainda que a coluna lhe cobre tantas décadas de maus-tratos, ainda assim é possível, ainda assim há o sonho, há o brilho catártico das cordas flutuando no encanto, à espera dos dedos que lhe mostrem o ritmo, o tom, a música: ele encara a propaganda uma última vez e retoma o caminho para casa.

 

Whisner Fraga é mineiro de Ituiutaba. Autor dos livros As espirais de outubro (romance, Nankin, 2007), Abismo poente (contos, Ficções, 2009), o que devíamos ter feito (Patuá, 2019), O privilégio dos mortos (2019), entre outros. Participou das antologias Os cem menores contos brasileiros do século, organizada por Marcelino Freire e Geração zero zero, de Nelson de Oliveira. Teve contos traduzidos para o inglês e alemão. É responsável pelo canal “Acontece nos livros”, no YouTube, em que fala sobre obras da literatura brasileira.