25 de jan. de 2023

Planos simples, desejos realizáveis

Por Carla Dias 

Alguém disse, como se lesse um outdoor que os olhos dele não conseguiam enxergar. Não se deixa levar pela repetição de fórmulas emocionais que vendem a ideia de que podem melhorar a realidade. Acontece que, dessa vez, ele foi fisgado. Com a realidade atravancada pelas frustrações, optou por tentar. 

Convenceu-se de que aquele era o melhor combo a ser cobiçado pelos que estavam tão frustrados quanto ele. Melhor até do que o oferecido por prestadoras de serviços para resolver necessidades e empurrar inutilidades: internet + tv a cabo + telefone móvel + telefone fixo + alarme residencial/empresarial + câmera de segurança e vários outros itens declarados cortesias que não passavam de mais um item embutido em um aproveitamento quase sempre impossível de ser desfrutado. 

Pensando na mudança necessária que lhe cutucava a paciência, na necessidade de rever sua história, começou pelos planos simples, trabalhando a própria capacidade de colocar o desapego em prática. 

Mudou-se para uma quitinete no centro da cidade. Vivia sozinho há tanto tempo, que aceitou rápido que não precisava de vários cômodos, mas sim de conforto, algo que cabia na sua nova casa. Com endereço residencial atualizado, resolveu o transporte. A firma ficava no mesmo quarteirão, então, seguia a pé para o trabalho. No armário de roupas, não havia espaço para peças de mera ocupação. Tudo era usado e aproveitado. 

Especializou-se no minimalismo, na economia – financeira e de energia, em escolher o que de fato era importante e descartar o que sobrava. 

Na área do desejo, a situação ficou complicada. Às vezes, sentia como se uma coisa tivesse colidido com coisa outra e, devido a essa conexão meio desastrada, ele recebia algum contentamento. Era bonito de sentir, mas também efêmero de ensandecer o destinatário do agrado. Em pouco tempo, o paraíso dos desejos possíveis se assanhou pelos improváveis. Assim, passou a desejar como se estivesse em um filme de faroeste, sem saber onde ficava a saída daquele drama. 

Descartar os desejos atrevidos – emuladores dos realizáveis – tornou-se uma batalha, mas ele continuou a se esforçar para desviar deles. Começou por tentar entender o que os tornava inadequados para sua vida, o que não se mostrou efetivo ao processo iniciado com planos simples. Então, esbarrou em alguns pares de desejos atrevidos e os ditos o levaram a uma esbórnia de extras. 

Como pôde se esquecer de como eles eram divertidos e catárticos?   

Durante meses, culpou os eventos dos quais participou pelo seu fracasso em não conseguir se tornar o adepto ideal para o projeto planos simples, desejos realizáveis. Tantos cursos de autoconhecimento, palestras motivacionais, currículos enviados – aliás, deu-se conta de que o item “arrumar emprego novo” não cabia muito bem na lista de planos simples. Os casamentos aleatórios que assistiu na igreja da esquina. Os funerais aleatórios no crematório central, dos quais participou assumindo o papel de amigo discreto. Missas, sermões, grupos de oração, de apoio, de culinária, de nada adiantaram para aquietar seu desejo de desejar desejos nada comportados, a ponto de serem considerados realizáveis. 

Da tentativa dedicada de se tornar servo dos desejos possíveis, em busca de se sentir capaz de alcançar algo que planejou e acreditava que deveria ser simples, nasceu o deslumbre pelo complicado e pelo arriscado; a simpatia pelo impraticável. 

Tentou e alcançou o equilíbrio, ao menos um condizente com as suas inquietações. As escolhas ficaram mais simples, os planos, nem tanto. Quanto aos desejos, desfrutava dos possíveis, mas eram os atrevidos, alguns catalogados como improváveis, que indicavam o caminho que ele seguia. 

Da experiência, manteve a quitinete e o vestuário moderado. Às vezes, assiste a casamentos e participa de funerais. 

 

Carla Dias é paulista de Santo André. Escritora, baterista e produtora cultural, autora dos livros Os estranhos (romance – sic, 2009), Estopim (romance – sic 2012), O observador (contos – Penalux, 2016), Livro das confissões (poesia – Patuá, 2018), Baseado em palavras não ditas (romance – Edição do Autor, 2019), Fugas, pausas e desatinos (Laranja Original, 2022) entre outros. É cronista do Crônica do Dia desde 1998, ano de lançamento. Baterista da banda OsQuatro, vem trabalhando um repertório autoral com poemas de sua autoria musicados.