28 de jan. de 2023

Minireminiscencias #1

Por Glauco Mattoso

Quando sahiu (1986) a primeira edição do MANUAL DO PODOLATRA AMADOR, Hebe Camargo commentou no ar que era absurdo alguem achar lambivel um pé fedido, muito menos um pé masculino. Ahi alguns jornaes me entrevistaram e até me defenderam quando os leitores cahiam de pau. Mas, em Uberlandia, um desses leitores foi sympathico e enviou-me um aerogramma (aqui reproduzido) no qual desenhava o contorno de seu pé, com a seguinte mensagem: {Glauco, achei o maior barato sua entrevista na FOLHA DA TARDE. Segue o formato e tamanho do pé, tenho os dedos com alguns pellinhos e uma frieira no mindim, em tractamento ha 2 annos. Sou vidrado nos pés das minhas namoradas, ellas ficam com um tesão intenso, que culmina em OMs (orgasmos multiplos). (...) Não o achei louco maluco, te achei liberado.} O dissonnetto abbaixo, que accaba de sahir no livro PIFFIA PIVIA (pelo sello paranaense Lambrequim) allude a esses meus comprehensivos interlocutores. 


Meniniscencia [5627]

Nos annos oitentistas, duma sola
mandaram-me o contorno, com canneta,
traçado no papel. Aquella colla
não peço mais a alguem que me remetta.
Depois que fiquei cego, me consola
appenas uma scena na punheta:
lembrar-me do pé chato que, de eschola,
collegas tinham, sola suja, preta.
Um delles me pisou e, como balla,
chupei-lhe o dedão grego, que me escita
até neste momento. Não se eguala
tal sola à que é, nos classicos, descripta.
Pés chatos, expalhados, vão na valla
commum ser exquescidos, mas bemdicta
à mente vem aquelle que me emballa, 
no sonho, a phantasia mais bonita. 

 

Glauco Mattoso é paulistano de 1951. Nos annos 1970 editou o poezine Jornal dobrabil e destaccou-se entre os poetas "marginaes". Compoz mais de dez mil poemas ou de septe mil sonnettos e assignou mais de cem livros de poesia, trez romances (um delles em verso), trez volumes de contos, alem de chronicas, ensaios, um tractado de versificação e um diccionario orthographico, este systematizando sua reacção esthetica às reformas cacophoneticas soffridas pelo portuguez escripto. Mattoso perdeu a visão nos annos 1990 devido a um glaucoma congenito que lhe ensejou o pseudonymo litterario. Sua producção mais volumosa occorre appós a cegueira, graças a um computador fallante. Seus ebooks saem pelo sello Casa de Ferreiro e seu blog traz mais informação.