2 de jan. de 2023

Aos meus olhos... e aos teus?

 Por Krishnamurti Góes dos Anjos 

Da gênese de um Conto. 

Young Woman Reading by window - Auguste Toulmouche (1829-1890)

Em uma pintura um pouco antiga, com marcas da implacável passagem do tempo, vejo uma mulher. Está sentada em um cenário que parece ser uma sala. Na poltrona onde está, com as pernas cruzadas (posição que talvez lhe tenha permitido melhor apoio para o livro que tem entre as mãos), chama a atenção o pé que lhe ficou suspenso no ar, calçado em fino sapatinho rosa. 

A seu lado, uma mesinha de madeira apoia um vaso de flores. E quase em frente a si uma janela deixa passar uma luz mortiça, o que sugere estar amanhecendo ou ocorrendo o crepúsculo de um dia qualquer. O primeiro impulso que esta imagem de mulher me causa é de querer chamá-la, acenar-lhe, sinalizar que também sou daquela “religião” de leitores. Ela, cuja face esqueci, cujas roupas mal notei, precisamente que idade tinha não sei dizer, se aproxima de mim, pelo mero ato de ler. Mas o que estaria lendo? Será possível adivinhar a natureza de seu livro? Um romance de capa e espada com páginas recheadas de amores, damas perseguidas a desmaiar em florestas sombrias, perturbações do coração, juramentos, soluços, lágrimas? 

E se descobríssemos que, na verdade, o livro era o Madame Bovary, aquele romance escandaloso do Flaubert? Ou, na mesma linha, a mulher fotografada estivesse se deliciando com as peripécias da personagem Luísa de O Primo Basílio. Ou ainda, quem sabe, imaginando os “olhos de ressaca” da Capitu de Machado de Assis? Talvez tenha entre as mãos o Mrs. Dalloway, de Virgínia Wolff, ou, mais surpreendente ainda, recebendo naquele instante que a imobilizou em tintas da pintura, o impacto da estrofe de Floberla Espanca: “Quem me dera encontrar o verso puro, / O verso altivo e forte, estranho e duro, / Que dissesse a chorar isto que sinto!”? 

E como posso viajar no tempo, imaginei até que poderia ser uma coletânea dos “anos 80” do século XX. Talvez uma seleta reunindo textos de Sônia Coutinho, Helena Parente Cunha, Lya Luft, Marina Colassanti, Lygia Fagundes Teles e a grande Clarice! Não. Impossível ante aqueles trajes...  Mas, oh meu Deus! Não há como saber qual teria sido o livro.  Numa última olhada ao quadro, percebo que... Sim. É isto. 

*** 

Ela interrompe a leitura por um momento, olha para outro ponto do livro onde está encartada uma correspondência que há pouco lhe fora entregue e que não tivera nenhum ânimo para ler. Descalça parcialmente o sapatinho e desvia lentamente o olhar para um pouco mais além, entretanto, nesse exato momento, um furtivo raio de sol penetrou pela fenda envidraçada da janela e foi incidir precisamente no seu pé suspenso. O morno calor da luz solar daquele fim de tarde – é fim de tarde, agora decidimos – incidindo no sapatinho de cetim rosa, ou outra coisa qualquer dentro de si, causou-lhe um reflexo nervoso que a fez encolher os dedinhos. E, enfim, o sapato escapuliu-lhe no rumo certo do chão da sala. 

*** 

“Naquele dia eu me aborreci tanto com ele. Estávamos os dois em uma cadeira no quarto do hotel. Ele me puxara para si e me pôs sentada em seu colo. Fiquei amuada fingindo não dar atenção às suas explicações. Estive olhando fixamente para meus pés pendentes, fingindo brincar de equilibrar um chinelinho de cetim que se sustinha apenas nos dedos do meu pé nu. Naquela época, como eu era boba! Não sabia que podia ter controlado a situação. Podia mesmo ter dado as regras, armar a cena, distribuir os papéis. Poderia, se quisesse, ter sido a sua amante, já que ele era casado. Seria a diabólica e não a santa. Por que não? Pelo menos o teria para mim. Mas não, ele se recusou a me amar de verdade. Por que será que o amei tanto assim? Por que esse sentimento? Ele chegou e eu não sabia de onde vinha, ou como explicá-lo. Naquela época, e até mesmo agora, não encontro explicações. Não há mais nenhuma necessidade de explicações. Ah, aquela primeira tarde que passamos juntos... Quem me dera poder revivê-la novamente... O deleite úmido daquela tarde. As palavras doces que ele me dizia ao ouvido, os beijos na minha orelha me deixavam tonta, minha vontade dele estava à flor da pele e aquela inquietude sexual se instalando em mim. A princípio eu não consentia, mas deixei que acreditasse que queria. A áspera ternura de sua barba no meu pescoço foi me enlouquecendo e ele não parava de mordiscar-me o pescoço... Se deitando sobre o meu corpo. Ah, um furacão de desejos me arremessou a sensações que eu nem mesmo sabia que existiam. Um arrepio esquisito me fez abrir as coxas gentilmente, queria tê-lo dentro de mim para que saboreasse todo o prazer que minhas entranhas poderiam lhe dar, um atrito tão gostoso escorregando dentro de mim, e eu fui sentindo uma vontade quase irresistível de gritar. Gritar e pedir mais...e pedir mais... A intensa alegria de se estar viva naquele instante. Um orgasmo perfeito como nunca mais senti em toda a minha vida. Nunca mais, nem mesmo quando, anos depois, me casei. Um casamento de pura conveniência financeira. Virei a puta de um homem só. A fêmea comida e caçada há milênios. Pois é. Tudo isso terminou por criar em torno de mim um escudo inexpugnável. Jurei não amar mais ninguém. Tive que sublimar a ferro e a fogo aquela coisa que em mim ardia por ele. Quantas e quantas noites passei em claro, pensando nas palavras que ele me havia dito... Não. Daquela forma eu não conseguiria tê-lo. Jurei e consegui que ele jamais me tocaria novamente. Nunca mais. Privei-me e não deixei, que ironia, de passar pelas abjeções de uma união de outros interesses: trabalhos domésticos, roupinhas de marido a cuidar, comidinhas a fazer e meus sonhos distantes... As promessas da minha juventude, expectativas caídas na lama como pássaros feridos. E por quê? Para quê? Para hoje estar aqui sentada com uma conta bancária confortável e, ainda por cima, viúva, sem filhos, sem ninguém. E ele, coitado, continuou casado, não teve filhos, e foi viver em outro país gelado no norte do planeta... Se não fosse o Ernesto que, casualmente, em uma de suas viagens, não o tivesse encontrado, eu não saberia nem se ainda está vivo ou não... O que será que o Ernesto me conta nesta carta? 

*** 

Prezada amiga, 

Escrevo-te mais uma vez para dar-te notícias de nosso amigo. Infelizmente, ele não tem apresentado muitos progressos com a paralisia. Entretanto, a saúde geral é boa. Esforço-me o quanto posso para que não percebam de onde provêm as doações à casa de saúde onde ele está. Graças ao teu dinheiro, minha amiga, tornei-me bom samaritano. 

            Mas o que eu não faria por ti? 

            Um beijo desse seu criado,

                                               Ernesto. 

P.S. Anexos vão os comprovantes das últimas doações que fizemos. Vai também anexa a nota fiscal de uma cadeira de rodas que fiz chegar até ele. Ficou muito feliz. Depois te conto detalhes. Aos meus olhos parece que fiz bem. E aos teus? 

*** 

E então, a minha personagem Anita – eis afinal seu nome que por enquanto só a mim pertence –, descruzou as pernas em busca do calor do sapatinho de cetim cor-de-rosa. 


Krishnamurti Góes dos Anjos é baiano de Salvador. Escritor, pesquisador e crítico literário, é autor de Il Crime dei Caminho Novo (romance histórico), Gato de Telhado (contos), À flor da pele (contos), Embriagado Intelecto e Outros Contos e Doze Contos & Meio Poema. Possui textos publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último livro, O Touro do Rebanho (romance histórico), obteve o primeiro lugar no Prêmio José de Alencar, do Concurso Internacional de Literatura da União Brasileira de Escritores (UBE). Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 350 obras de literatura brasileira contemporânea veiculadas em diversos jornais, revistas e sites literários.