Por Carolina Schettini
Janeiro
Um presente: caderninho com
doze páginas coloridas. Que engraçado, escrever diário depois de velha! Só sei
que esse ano quero viajar bastante, fazer todas as viagens possíveis e
imagináveis.
Vou a todo lugar do planeta.
Menos na China. Parece que criaram um vírus. Como lá eu já fui, posso riscar da minha lista.
Fevereiro
Que viagem! Praia, praia,
praia. Sol, sol, sol. Car-na-val! Aguardo os próximos feriados.
E o tal do vírus? Já virou epidemia. Estamos na metade do mês, ainda não desceu para nosso país tropical.
Março
Agora é oficial, todo
mundo obrigado a ficar em casa.
Pandemia. Mundo inteiro
isolado por causa de uma coisica minúscula.
Já que vou ficar aqui e vai sobrar um tempinho, vou continuar escrevendo linhas curtas, resumidas, mensais, um pouco dessa realidade, que parece uma viagem turbulenta. Sozinha, em família, em casa, mas viajando, ainda que em pensamento.
Abril
Fechou academia, fechou
tudo. Vou começar a fazer ioga pelo Youtube. Vai ser bom começar algo novo,
zen. Mudança de hábitos, a essa altura da vida, só pode ser boa coisa.
Se fosse uma viagem de verdade, estaria indo para uma cachoeira, algum ecoturismo chique, mas ecoturismo.
Maio
Fui colocada no grupo de
risco do trabalho. Vou trabalhar de casa. Os colegas ficaram com raiva! Com
raiva por eu ter um problema de saúde. Com inveja. Brigaram também com as
pessoas idosas. Os jovens brigando porque queriam ser velhos. Mal sabem eles
que ser idoso não é vantagem.
E virei professora particular de homeschooling. Na verdade, voltei a estudar. Aprendi a fazer maquetes, coisas de reciclável. Verdadeira viagem de intercâmbio no ensino fundamental.
Junho
Nada de festa junina,
fogueira, quentão, nada. Em março, pensei que junho fosse mês distante, que
poderia viajar, marquei férias, comprei passagens, tudo remarcado ou cancelado.
A ioga não durou. Tirei a
ergométrica debaixo das roupas sujas e pedalo assistindo séries na televisão.
Já vi tudo, em todas as línguas, todas as histórias, ninguém pode falar que não
sou eclética. Série de faroeste!? Me internem!
Museus pela internet, voltei a ler os clássicos. Uma viagem cultural.
Julho
“Tudo como antes na terra
de Abrantes”. Estou de férias. Férias isolada dentro de casa. Só serve para
acalmar o grupo de whatsapp do serviço. Param de falar mal de mim, vão falar
mal só dos outros.
Dizem que o grupo de risco
“finge” estar no grupo de risco e fica por aí, passeando no shopping.
Compras? Pela internet. Me tornei uma viajante consumista. Finjo que estou num hotel e pergunto a meu marido, como se ele fosse o recepcionista, se chegou alguma caixa para mim.
Agosto
Isso não acaba nunca? Todos os dias em casa. Todos os dias em casa. Todos os dias em casa.
Comecei com ioga. Cansei.
Pedalei na ergométrica. Cansei. Agora, me distraio dando a volta a pé no
quarteirão. Sempre detestei andar na rua. A pé, então, um castigo.
Vou no horário que ninguém
me vê, de máscara, mal conseguindo respirar.
Um dia, começo por cima,
no outro, começo por baixo e assim os dias vão passando. Me imagino em uma viagem
de aventura. Sou aventureira, explorando as flores e pedras que vejo pelo
caminho.
Sempre tiro uma foto para
registrar meu grande feito, escolho um canteiro de capim dos pampas, aquele
capim alto, com folhas que parecem plumas, saídas de escola de samba.
Ontem, quando passei por
lá, haviam cortado tudo. Só restaram tocos de madeira no chão. Maior tristeza! Será
que olharam na câmera de segurança e viram que eu tirava fotos ali quase todos
os dias? Até que ponto vai a maldade
humana?!
Por pouco não entrei em depressão. Por causa de um capim! Um monte de capim!
Setembro
É primavera! Vou florescer
como aquela planta que floresce dentro de casa: Árvore da Felicidade. Quem lhe
deu esse nome, só podia estar de brincadeira. Quando acabar esse suplício, só
vou comprar planta que fica do lado de fora. Lado de dentro nunca mais.
Estou viciada em reprise
de novela. Se já assisti tudo da primeira vez, por que será que não me lembro de
quase nada?
Deve ser isso que os
cientistas dizem ser memória seletiva.
Por falar em memória
seletiva, me lembrei que sei cozinhar. Muito bem, por sinal. Fingi por anos não
saber nem fritar um ovo e falta pouco para eu tirar um diploma do le cordon bleu.
Estou uma viagem gastronômica, toda semana preparo um prato diferente, uma comida exótica de algum país do mundo.
Outubro
E essa pandemia que não
acaba, remarquei aquelas passagens de julho para outubro e precisei remarcar
novamente para abril do ano que vem. Pensei que ano que vem estivesse longe,
será que vão deixar eu remarcar de graça mais uma vez? Ou duas? Ou três?
Outubro tem tanto feriado, seriam ótimas viagens românticas. O jeito é abrir um vinho e beber até não saber onde se está.
Novembro
Quanta coisa a gente perde
por ficar dentro de casa! Quantas festas, casamentos, até batizado! Eu era
arroz de festa, virei caruncho!
Era uma viajante festeira, virei uma viajante num retiro espiritual.
Dezembro
Passei por todas as viagens durante esse ano. Fui todo tipo de viajante. E não importa qual eu prefira, a verdade é que a esperança é o que define o meu futuro.
É a esperança que me mantém alerta. Esperança, palavra derivada do verbo esperar. Espero a vacina, espero que passe, espero que possa viajar de novo, que possa aglomerar, que possa ver a pessoa amada chegar de longe.
É a esperança que me
impede de adoecer. Não de covid, já que
não saio de casa, mas de virar hikikomori, um recluso social.
É a esperança que me faz
fazer planos, montar árvore de Natal, comprar presentes, escrever metas no
papel.
É o que me faz esperar pela próxima viagem. Se esse ano consegui criar viagens fantásticas, imagino ano que vem!
Carolina Schettini não podia viajar por causa da pandemia. Aproveita, então, para mostrar seus textos ao mundo. Participa de antologias de crônicas, contos e poesia e publica livros infantis: No céu e no Mar (Páginas Editora) e Bem (independente) e romances: Re(a)mar (Páginas Editora) e O Quarto Coração (Kindle). Volta a estudar em oficinas literárias e se torna bastante assídua no Instagram e no site www.voandovou.com.br, onde publica minitextos e interage com leitores e amigos.