Por Israel Peixoto
O gato angorá de pelo rajado
aconchegou-se próximo ao rosto de Pedro. A imensa barriga do bichano o impediu
de respirar, então ele acordou. Encarou o pobre animal com olhos ainda
sonolentos e o amaldiçoou por acordá-lo de um sonho em que fazia amor com Lana
Del Rey; ela dizia num português perfeito o quanto o amava.
Por um momento pensou em como,
dentro de sua mente, havia um mundo feito sob medida para ele. Bem, Pedro
gostaria de estar naquele mundo agora.
Olhou em volta, dormiria no chão da
sala como na noite anterior. Um grupo de moscas voava sobre a mancha de
vinho no carpete branco. Na televisão, a jornalista vestida num terno preto bem
cortado, atualizava seus telespectadores a respeito dos novos contágios de
COVID-19.
__ Já sei, mais gente morreu. – disse
ele, indiferente, depois desligou o aparelho. – Sai Sansão...
Sansão prontamente se acomodou em
cima do sofá. Pedro foi para o banheiro. Durante o percurso ele perguntou se
era realmente importante manter certos hábitos de higiene na quarentena já que
morava num apartamento sozinho. Não! Hoje era dia de reunião online da empresa,
seria importante manter uma aparência minimamente decente.
No cubículo que mal cabia uma
pessoa, ele se pôs em frente ao espelho. Aquele reflexo não pertencia a Pedro.
Havia um homem de olhos verdes, cujas córneas estavam prestes a saltar para
fora; Pedro era careca, mas tinha uma barba loura e volumosa que começava a
mostrar sinais de descuido. Os músculos, aos poucos, se desfaziam em banha.
Depois do banho, Pedro vestiu uma
camiseta azul anil, na parte de baixo apenas uma cueca nova. Prostrou-se em
frente ao computador. A reunião estava prestes a começar.
Uma jovem de olhos agateados e
cachos pretos volumosos o chamava, ele rapidamente a atendeu. Ela estava tão
linda quanto na foto. Aquela era Sabrina, sua chefe e ex-namorada.
__ Oi... tá me vendo bem? Tá meio
ruim a conexão.
__ Te entendo perfeitamente, Bina.
– Silêncio. Ela arregalou os olhos como forma de corrigi-lo. – Sabrina! Te
entendo perfeitamente.
__ Eu vou colocar o Eduardo na
chamada.
Eduardo era um homem magro, de
cabelos castanhos que usava óculos, não era próximo a Pedro, mas trabalhavam no
mesmo setor.
__ Ei, pessoal, boa tarde! Ou
melhor, boa noite, Sabrina. Que horas são aí na Inglaterra?
__ São quase oito da noite. Então,
vamos começar?
A conversa sobre estratégias de
marketing durante a pandemia durou aproximadamente duas horas. Ao fim da
reunião Eduardo foi o primeiro a desligar. Sabrina fez um pedido a Pedro:
__ Eu posso ver o Sansão, eu sinto
falta dele.
__ Claro! – Pedro chamou o gato e
bateu na ponta da mesa três vezes.
Sansão atendeu ao chamado e pulou
no colo dele, Pedro o envolveu com as mãos e colocou em frente à câmera.
Enquanto Sabrina falava com a bola de pelos felpuda, ele grunhia,
indiferente.
__ Meu Deus! Ele tá mais gordo do
que eu me lembrava. – disse Sabrina, sorrindo.
__ Bem, eu não posso reclamar. –
Pedro passou a mão na própria barriga. Eles riram juntos. Silêncio. – Eu
deveria ter ido pra Londres com você.
Sabrina encerrou a
chamada.
Nas horas que sucederam, Pedro
pensou no quão estúpida fora aquela frase. Ele era estúpido! Estava convivendo
consigo há duas semanas, 24 horas por dia. E na sua mente vazia, Satanás
trabalhava incansavelmente relembrando-lhe momentos os quais quis pensar que
aconteceram em outra vida.
O relacionamento com Sabrina era um
filme clichê de comédia romântica; eles gostavam das mesmas coisas, sexo bom,
vida estável. Então eles terminaram. Terminaram por quê? Pedro não conseguia se
lembrar... foi algo sobre não estar preparado para construir uma vida a dois
numa terra onde as pessoas misturam chá no leite. De qualquer modo, os efeitos
do término de 2 anos cobravam seu preço agora. Os bons momentos vividos ao lado
dela tornaram-se instrumentos de tortura e automutilação
psicológica.
Para livrar-se daquela ressaca de
amor temporal, desbloqueou o celular e ligou para o primeiro contato que surgiu
na tela. Ligou para a mãe.
Quando se deu conta de que a última
vez que falara com ela foi há 9 anos, no enterro do pai, era tarde demais. Ela
já estava na linha:
__ Alô... – Ouve-se uma voz cansada
e rouca. – Quem é?
__ Shirley... sou eu, Pedro. – Sua
voz era trêmula e quase inaudível. – Eu só liguei pra saber como estão as
coisas na casa de repouso. Estão cuidando bem de você?
__ Estamos todos trancados, ninguém
pode sair ou entrar, as enfermeiras se vestem como astronautas. Pouca coisa
mudou, não faz diferença. Por que você me ligou?
Shirley sequer fez questão de
esconder sua insatisfação, uma viúva de quase 70 anos que, deixada para morrer
num lugar desconhecido, não tinha que se dar ao trabalho de censurar seus
sentimentos.
__ Eu só queria saber se você
estava bem... – Pedro suspirou fundo, talvez fosse melhor simplesmente desligar
o telefone.
__ Eu estava bem, Pedro. Eu estava
ótima até o desgraçado do seu pai chegar em casa com uma criança de 6 anos nos braços
dizendo que tinha uma amante, dizendo que ela o havia abandonado e que eu teria
que cuidar do filho bastardo dos dois. E tudo isso porque eu não fui boa o
suficiente para dar o filho que ele tanto quis... desde então minha vida tem
sido um verdadeiro inferno!
Pedro atirou o celular contra a
parede. Shirley o fez lembrar por que se mantinha distante, não apenas dela,
mas de qualquer relacionamento complexo o bastante para gerar expectativas e
decepções. Pedro não conhecia nada além da culpa. Era carente o suficiente para
querer alguém sempre por perto, mas tinha medo, pois sabia que jamais faria
ninguém feliz.
Ele foi até a geladeira, pegou a
última garrafa de vinho, seguiu para a varanda e sentou-se no chão para
contemplar o pôr-do-sol. Sentiu a brisa que trazia um leve cheiro de
poluição. O sol começava a se esconder por trás dos grandes arranha-céus de São
Paulo, as cores dançavam no céu como numa tela de aquarela, elas iam do mais
profundo negro até um púrpura suave.
Sansão aconchegou-se no seu colo,
miava, queria afeto. Pedro lhe acariciou o pescoço e a barriga. Entre um gole e
outro direto da garrafa, disse:
__ Sabe, Sansão, a relação que nós
temos é perfeita.
__ E mesmo assim, sinto que não sou devidamente valorizado! – ponderou o gato.
Israel Peixoto tem 24 anos, é técnico em
agropecuária formado pelo Instituto Federal de educação, ciências e tecnologia
Baiano. Escritor e poeta, teve seu primeiro poema publicado na Antologia Poética
Bardos Baianos Médio Sudeste. Administra a página Ritma Poesia, onde posta seus
poemas. Sonha em seguir carreira jornalística e pretende publicar seu primeiro
livro em breve.