18 de mar. de 2022

Androides vivem com medo

Por Denise Ravizzoni 

Não havia mais pão, leite, batatas. Precisava de açúcar, velas e fósforos. Tinha adiado o momento esticando os últimos recursos da despensa até o limite. Havia medo do ar, das pessoas, de tocar acidentalmente as superfícies. No filme sobre o futuro distópico, o androide pergunta ao humano se agora sabe como é viver com medo. Eu sei. E embora muitos finjam que nada está acontecendo, eu sinto. A chuva cai como uma cortina fina lá fora e gela minha vontade de sair. Claro, tinha que estar chovendo. Sair. Uma operação e tanto! É necessário preparo prático, medidas fundamentais para viver na nova realidade, e preparo psicológico para não entrar em pânico, mesmo precisando correr o risco. 

Vou até a sacada e olho a chuva, avalio os poucos passantes. Para eles, nada parece ter mudado. Alguns dirigem carros, outros caminham portando guarda-chuvas, outros, ainda, apertam o passo para tentar reduzir o tempo em que caminham pela rua molhada. A vida tem sido diferente para cada um desde março de 2020. Quem pode, permanece só, isolado, se comunica com poucos, não toca em ninguém. Depois da overdose de exposição, comunicação massiva rasa e rápida, conexões cibernéticas com qualquer parte do planeta, o isolamento cai como uma imensa pedra e afunda a todos em suas próprias versões de solidão. A minha é silenciosa e atravessa dias e noites sem respeitar o limite das horas. Ouço os sons da rua, os ecos nos corredores do prédio, os ruídos abafados dos vizinhos. Sei que há mais, e todos estão aí, mas é como se não estivessem. E é preciso força para tornar a vida o mais próximo possível do que deveria ser real. A vontade é seguir à deriva, simplesmente deitar de lado, abraçar os travesseiros e esperar pelo fim do mundo ou o fim de mim, o que vier primeiro. Mas falta pão, leite, batatas... já disse isso. Como se não bastasse o esforço necessário para dar o primeiro passo, há a volta. Mais medidas de segurança, mais protocolos: limpar os sapatos, jogar as roupas para lavar, desinfetar tudo o que veio da rua, banho longo esfregando a pele até avermelhar. Antecipar essa volta é pior do que vivê-la. Minha alma se cansa só de pensar. Mas é preciso, eu sei. E por isso, vou. Dirijo com mais cautela do que usualmente faria. Longe de mim me envolver em algum acidente. Exige contato, troca de telefones, coisas assim. O látex das luvas atrapalha o tato, mas, de qualquer modo, não quero tocar em nada. No estacionamento, silêncio. As poucas pessoas que circulam não falam nem riem como de costume. Passos rápidos, e logo já estou cruzando os corredores cheios de produtos nas prateleiras como quem passa por um túnel perigoso. Na minha direção, um homem caminha hesitante. Anda meio curvado, parece carregar um peso enorme em cada ombro. Meu primeiro impulso é dar meia-volta e desaparecer no corredor seguinte, mas avalio a distância e acho que será seguro. Quando o homem se aproxima e passa por mim, sinto a leve tensão que se estabelece, percebo os olhos mais abertos do que o necessário e fixos à frente. Não há sinal de reconhecimento, um aceno de cabeça, um alento humano. Nesse mundo novo que cheira a álcool 70º e a desinfetante, estamos todos muito mais sós e, sim, meu caro androide, todos agora sabemos o que é viver com medo. 


Denise Ravizzoni é gaúcha, radicada em Santa Catarina. Participou de diversas antologias, colaborou com revistas virtuais como Mallamargens, 3AM, Cabana Cult, Beco do Crime e Capitu With Lasers. Foi uma das fundadoras do blog coletivo Sexo & Crime e publicou os livros de contos As muitas que me habitam e Os fantasmas da cidade e o romance O outro lado do vidro.