saí de casa com dificuldade,
como quem escapa de um asilo
tendo como acompanhante
a minha indefectível
bengala canadense
fazia quase três anos que eu
estava trancafiado em casa
numa vida de reclusão imposta
pelas sequelas do derrame
agravada pela pandemia que não
dava trégua: muitos cadáveres
jogados na rua com seus cheiros
nauseabundos aguardando a coleta
das equipes de resgate. as famílias,
sem opção, jogavam os corpos
enroladas em sacos plásticos
com muita fita crepe,
para estancar a dor das perdas
prematuras e já sem nomes,
números, cifras e estatísticas
que nos deixavam atordoados
olhando uns para os outros
tentando adivinhar qual seria
o próximo a ser descartado.
eu não poderia sair, nem
tanto pela catástrofe, mas
pelas minhas limitações
físicas, mas escapuli da
prisão domiciliar e sem
tornozeleiras eletrônicas
eu vivia recluso e isso já não
me incomodava tanto assim:
só resolvi sair para constatar
“in loco” a carnificina letal
instaurada pelos walking deads
por precaução levava meu kit básico
de sobrevivência: órteses, próteses,
cadeira de rodas e cadeira de banho
para alguma eventualidade de lavar
o corpo dos pedaços que se decompunham
ao sol posto ou debaixo da chuva
que lavava aquelas poças de sangue
e imundícies da cidade arborizada.
saí lépido como sai uma tartaruga
deixando milhares de ovos submersos
na areia escaldante. então fui capengando
com muitas dores no braço direito
causada pela hemiplegia. era temerário eu sair
sob todos os aspectos, mas deu a compulsão
de me misturar àquele caos sendo eu próprio
um caos ambulante como um Frankenstein.
dei apenas alguns passos e fui derrubado
pela perna direita encurtada e o corpo
travado. minha pior limitação era levantar
após qualquer queda e me deixei ficar ali
esperando a contaminação que viria
com certeza pelo bafo de algum improvável
socorrista que me vendo teria a compaixão
desesperada de tentar fazer alguma coisa
para quem já estava com o passaporte
carimbado para ir ao encontro daqueles
milhões
que me precederam. carpe diem.
Da Essencialidade da Água, poema e livro inéditos.
Milton Rezende nasceu em Ervália (MG). Viveu parte da sua vida em Juiz de Fora (MG), onde foi estudante de Letras na UFJF. Funcionário público aposentado, atualmente reside em Campinas (SP). Sua obra consiste em treze livros publicados, entre os quais Inventário de Sombras (Multifoco, 2012), A Magia e a Arte dos Cemitérios (Penalux, 2014), Mais uma xícara de café (Penalux, 2017), O jardim simultâneo (Penalux, 2013) e Anímica (Penalux, 2022). Site www.miltoncarlosrezende.com.br.