Por Cynthia Beatrice Costa
Com trama um pouco modificada, a nova adaptação de Morte no Nilo tem diversidade no elenco e personagens boazinhas
Chega esta semana aos cinemas brasileiros Morte no Nilo (Death on the Nile), adaptação do célebre romance de Agatha Christie dirigida e estrelada por Kenneth Branagh. Chega com atraso, devido a problemas na filmagem, à pandemia e ao constrangimento gerado por Armie Hammer (acusado de estupro) e por Laetitia Wright (acusada de ser antivacina). Enfim, dores de cabeça para a 20th Century, do grupo Disney, que contrastam com o esforço politicamente correto do filme.
Como no livro lançado em 1937, uma série de crimes ocorre a bordo do Karnak, um barco turístico que percorre as águas do rio Nilo. Cabe ao detetive belga Hercule Poirot, que está de férias passeando por templos milenares, descobrir o culpado entre os viajantes. Nessa nova adaptação, a trama está ligeiramente alterada – causando surpresa (boa ou ruim, a depender da sensibilidade de cada um) para aqueles que já conhecem a história de cor e salteado.
O roteirista, Michael Green, já esteve em equipes premiadas, inclusive a que foi indicada ao Oscar de melhor roteiro adaptado por Logan (2017). Desta vez, Green trabalhou sozinho no roteiro, mas não sem a influência de Branagh, um experiente adaptador de clássicos que ficou conhecido nos anos 1990 por filmes baseados em Shakespeare – seu Hamlet (1996), principalmente, costuma ser apreciado.
É esperado que adaptações promovam mudanças, afinal, trata-se de uma nova obra dirigida, ao menos parcialmente, a um novo público. Parcialmente. Entre os espectadores, também se encontram os que leram o livro lá na adolescência e se lembram das personagens criadas por Christie com carinho; há também os fãs de Morte Sobre o Nilo, adaptação de 1978 bem diferente da atual. É possível que essa parcela nostálgica sofra um pouco diante da releitura. Os menos apegados e/ou menos versados no universo “agatheano”, porém, podem tirar bom proveito do figurino impecável, da trilha sonora de Patrick Doyle, das belezas do Egito – modificadas digitalmente para ficarem compatíveis com 1937 – e do elenco multirracial – modificado para ficar compatível com os anos 2020.
Do que ninguém tirará tanto proveito, porém, é da falta generalizada de perversidade. As personagens foram reinventadas em versão boazinha. Que pena: o bom dos whodunits desse tipo – mistérios que giram em torno de encontrar um culpado entre um número limitado de personagens – é que qualquer um ali pode ter cometido o(s) crime(s). A razão pode ser a mais fútil. O método, basicamente qualquer um. O passo a passo, o mais rocambolesco imaginável. Quem já brincou com os jogos de tabuleiro Detetive e Scotland Yard sabe bem disso: “condessa, na biblioteca, com um martelinho de ouro, por vingança”. Em 2019, o divertido Entre facas e segredos, de Rian Johnson, parodia bem o espírito da coisa. Vindo lá de 1985 para as plataformas de streaming, o deliciosamente idiossincrático Os sete suspeitos (Clue), de Jonathan Lynn, também o faz muito bem.
O filme de Branagh, por sua vez, não é engraçado. Arranca pouca ou nenhuma risada, embora tente às vezes. Não que adaptações de Agatha Christie devam ser comédias. E não sobrou nenhum (And Then There Were None), minissérie de 2015 de Craig Viveiros que adapta um dos livros mais amados da escritora inglesa, tem tom dramático, até mesmo sombrio, e funciona às mil maravilhas. O atual Morte no Nilo, porém, tende ao melodrama e percorre o malfadado caminho entre a caricatura e o comentário social sério.
Caricatura, no universo de Agatha Christie, não é demérito. Seus enredos são formuláticos (dizem que ela construía as tramas a partir da resolução final) e as personagens, estereotipadas: gente pobre que quer ser rica, gente rica indecente, gente vingativa, gente gananciosa. E é ótimo que assim seja: ficamos doidinhos para saber quem foi (quem roubou? quem mentiu? quem matou?) sem nos preocuparmos demais com o bem-estar desse pessoal horroroso. Os suspeitos, mesmo quando se revelam inocentes, costumam ser falsos como nota de 300. Desse modo, não sentimos tanta empatia caso alguma injustiça seja cometida; é comum que uma pessoa morra atrás da outra sem que tenhamos um pingo de compaixão (para ler/ver: Uma porção de centeio; Morte na Mesopotâmia; Morte no Caribe; Matar é fácil). Afinal, não passa de escapismo.
Não que sintamos grandes empatias durante o filme de Branagh, mas por outros motivos. O que Linnet, interpretada por Gal Gadot, perdeu em esnobismo, ganhou em sem-gracice; igualmente sem-graça é o Simon Doyle de Armie Hammer; Rosalie Otterbourne (Laetitia Wright), amargurada e invejosa no livro, agora poderia ensinar Irmã Dulce a ser uma pessoa melhor; Salome Otterbourne (Sophie Okonedo) não é mais a escritora desvairada de livros eróticos, mas uma cantora de jazz bem-sucedida; Marie Van Schuyler (Jennifer Sauders), insuportavelmente pedante no livro, agora é comunista e não maltrata Bowers (Dawn French); com tanta bondade espalhada, Louise Bourget (Rose Leslie) deve ter sido dispensada de usar seu uniforme de femme de chambre. Jacqueline de Bellefort (Emma Mackey), pelo menos, continua obsessiva de dar dó.
Outros ajustes foram feitos entre as personagens. Sr. Ferguson (o comunista original da trama), Joanna Southwood, Dr. Bessner, Signor Richetti, Cornelia Robson e James Fanthrop foram, todos, cortados. Coronel Race, que auxilia Poirot na investigação, também. O advogado capcioso Andrew Pennington foi transformado em Andrew Katchadourian (Ali Fazal). Lord Windlesham (Russell Brand), antigo pretendente de Linnet, não vai ao Egito no livro, mas agora vai e está entre os suspeitos. Sra. Allerton e seu “filhinho da mamãe” Tim foram substituídos por Euphemia (Annette Bening) e Bouc (Tom Bateman). Por fim, o colar de pérolas de Linnet agora é um extravagante colar de diamantes da Tiffany, ou seja, um merchanzinho básico – e, de quebra, lembramos de Titanic (1997).
No que diz respeito à manutenção das personagens, a mais colada no livro é a adaptação da série Agatha Christie’s Poirot, do canal britânico ITV (fãs da rainha do crime: vejam a série!). O episódio Death on the Nile foi ao ar em 2004 e tem uma Emily Blunt jovenzinha no papel de Linnet, além de vários veteranos das telas inglesas no elenco. Essa adaptação tem a vantagem de dialogar, ao mesmo tempo, com o livro e com o filme de 1978.
Contudo, a maioria das mudanças e atualizações promovidas pelo filme de Branagh é compreensível e não gera grandes impactos negativos. Incrivelmente, porém, apesar da clara empreitada pró-diversidade, a cada casal LGBTQI+ acrescentado, umas três sexualidades não convencionais desaparecem do mapa. No saldo final, há mais casais tradicionais (e entediantes) no filme de 2022 do que no livro escrito em 1937, o que, convenhamos, é um feito. Só para citar um exemplo. Tim, incapaz de amar outra mulher além de sua mãe no livro (sim, Agatha fazia esse tipo de insinuação), metamorfoseia-se em um apaixonadíssimo Bouc, que se encontra em conflito com a mãe por causa de um amor semiproibido.
Mas, de matar mesmo (trocadilho intencional), são as histórias de amor de Poirot. Uma no passado, que explica seu bigode e sua melancolia, e uma no presente, que não explica nada. A sexualidade ambígua de Poirot não é uma de suas principais características?! No universo ficcional de Agatha Christie, exceto pelo platônico interesse pela Condessa Vera Rossakoff, não há mais nada na vida amorosa do detetive além de muitos bromances – com Coronel Race, Capitão Hastings, Superintendente Battle, entre outros – e de um narcisismo intenso.
A despeito dessa sua não muito convincente abordagem de um Poirot-em-sofrência, Branagh parece estar mais à vontade nessa sua segunda aparição, após Assassinato no Expresso do Oriente (2017). Diversos atores, com graus distintos de sucesso, já encaram a missão de levar às telas os trejeitos marcantes e a autoestima avantajada do “melhor detetive do mundo” criado por Christie. Em 1974, a própria autora teve a oportunidade de ver – e de aprovar – a interpretação de Albert Finney na adaptação de Assassinato no Expresso do Oriente dirigida por Sidney Lumet. Décadas depois, David Suchet tornou-se o Poirot favorito de muita gente ao encarná-lo por 24 anos e 70 episódios na já citada série Agatha Christie’s Poirot. Sua longa experiência com o papel resultou no documentário Being Poirot (traduzido no Brasil como Ser Poirot), de 2013, e no livro Poirot and Me (“Poirot e eu”), de 2014.
Porém, antes dos maneirismos calculados de Suchet conquistarem o coração de muitos Agatha-maníacos, foi o veterano Peter Ustinov, vencedor do Oscar por Spartacus (1961), que divertiu plateias na pele do brilhante detetive particular – divertiu para valer, pois Ustinov foi um Poirot bonachão e sarcástico, menos reverente à criação de Christie do que outros que vieram antes e depois (incluindo aí Suchet e Branagh). Embora também esteja imperdível em Assassinato num dia de sol (1982) – atente para a cena de Poirot “nadando” na praia –, seu ápice no papel foi em Morte sobre o Nilo (1978), de John Guillermin, que merece ser revisitado.
Com tom debochado e um elenco ultraestrelar que mais parece um desfile de divas (Bette Davis, Maggie Smith, Angela Lansbury, Mia Farrow, Jane Birkin...), à época de sua estreia o filme de Guillermin foi considerado exuberante demais e misterioso de menos. The New York Times, por exemplo, torceu o nariz para o estilo abertamente camp (algo como “afetado”), dizendo que os atores tinham sido encorajados a agirem como caricaturas de si mesmos – e eis que hoje, com uma parte do elenco morta e a outra consagrada, esse é justamente um dos atrativos do filme. Onde mais veríamos Maggie Smith trabalhando como dama de companhia de Bette Davis? Morte sobre o Nilo provavelmente melhorou com o tempo. Hoje, não só é divertidíssimo, como figurino, direção de arte e trilha sonora continuam deslumbrantes, sobretudo a música de abertura de Nino Rota.
O deboche do filme de Guillermin combina com a solução mirabolante dos crimes cometidos a bordo do Karnak. E essa é uma diferença fundamental entre o filme de 1978 e o atual: o de 2022 leva-se mais a sério. Inicia com cenas na Primeira Guerra Mundial para esclarecer o passado de Poirot. Em seguida, salta 20 anos e tenta ser sexy com coreografias aparentemente inspiradas em Dirty Dancing – Ritmo quente (1987). Depois, vem certo tédio. Por fim, na melhor parte, as personagens estão à beira de um ataque de nervos e Poirot é obrigado a trabalhar.
É possível que Branagh continue se enveredando por romances da Agatha Christie, que têm mesmo uma vocação para a adaptação cinematográfica. A rainha do crime deixou 66 romances de mistério, além de contos e peças de teatro, e quase todos viraram best-sellers, além de a maioria já ter sido adaptada para a TV e vários para o cinema.
Atrás apenas de Shakespeare e da Bíblia, Christie é a escritora que mais vendeu livros na história – de acordo com a Agatha Christie Limited, que administra os direitos de sua obra, um bilhão de cópias só em língua inglesa e outro bilhão nas mais de 100 línguas para as quais são traduzidos. No Brasil, é campeã de vendas em sebos e, nessa pandemia, fez companhia para muita gente isolada. Algumas editoras brasileiras publicam atualmente seus livros, como L&PM, Nova Fronteira e HarperCollins Brasil (dica: desta última, tradução de Morte no Nilo de Érico Assis, lançada em 2020).
Que bom, porque, em se tratando de Agatha, mais é mais.
Cynthia Beatrice Costa é tradutora e professora do curso de Tradução da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), com pesquisa na área de tradução literária e
adaptação cinematográfica. Nascida em Osasco (SP), formou-se em Jornalismo pela
Cásper Líbero e trabalhou por mais de uma década como repórter de revistas e
editora de livros, enquanto foi se especializando ao longo das pós-graduações.
Leitora voraz e cinéfila de carteirinha. Livro e filme preferidos: Dom
Casmurro e Janela Indiscreta.