Por Whisner Fraga
ela se abisma nas mordidas,
está na quina da sala e usufrui do desprezo: uma crina de brio
recomenda-lhe que continue sentada, os dentes martelam um sabor de ranço mil
vezes repisado e dez mil vezes renovado:
almoço em família,
era importante que se achassem isso, uma família, mas em uma guerra
seria cada um para si, do mesmo jeito,
em uma briga, em um lanche em que sobrasse um único pão com presunto,
cada um para si,
em uma querela territorial, essas banalidades entre milícias,
as rugas sequestram a alegria perdida no semblante ilegível, na
insegurança de décadas bamboleando na mandíbula,
houve felicidade no corpo demolido?,
os que se confraternizam não se importam: só existe o tempo que eles
protagonizam, até quando durar,
ela engole o abandono, meticulosamente,
uma ponta de olho derrota a catarata e ela vê tudo, mas não reconhece
nem o neto, que parece ostentar uma compaixão premeditada, um respeito imbecil,
nem enxerga a que serve,
família era pai, mãe e irmãos, mas agora até amigo, até comparsa, a
religião, é bom que morra, ela pressente, para dar passagem a ideias novas: a
morte é melhor do que a adaptação, não é preciso esforço,
ela embica a atenção para a tv e se dedica às imagens requentadas, aos
textos prometendo inutilidades a preços módicos,
tanto faz que seja domingo e a cerveja não deixa nenhum copo vazio e a
carne depende de cem mortes e de um fogo obstinado,
ela mastiga, embora preferisse dormir,
ela conta as investidas da dentadura destruindo a carne com murros
inesperados e a gengiva reivindicando uma prótese nova, mas as prioridades são
definidas por quem traz o dinheiro para casa,
parte dela é antigamente, boa parte,
tenta se levantar, mas não vence o espaço entre a cadeira e a mesa e o
homem acode, depois se enfurece: poderia ter caído, poderia ter se machucado,
poderia etecetera,
logo reflete se neto é família,
a música recomeça e há casais que se agitam pelo terreiro e a velha só
avista uns borrões esquadrilhando pela tarde abafada,
a velha também não escuta mais,
a velha não pode nada, é a obrigação:
aguardar,
se ficasse quieta, ele a levaria mais a esses passeios,
a velha empaca,
os amigos estranham, mas, ora, quem paga a bebida mesmo?, os amigos não
entendem por que ele tem de cuidar de todos, esse hábito de cuidar de todos
para mandar em todos,
uma velha é sempre um arranhão em uma festa,
só que ele tinha de levar a velha e não importa se ninguém entende, já
que é ele que paga comida e bebida,
dali a pouco alguém se compadece e pergunta à velha se ela quer ir
embora, mas logo se arrepende, pois o chefe não gosta que se metam assim,
ela sabe que deve aguardar:
aprendeu.