5 de fev. de 2022

A culpa é de quem? 'Nitram' e 'Mass', dois filmes premiados, retornam à problemática do jovem atirador em massa

Por Cynthia Beatrice Costa 

O que fazer quando seu filho “dá errado”? Quando se mostra difícil, implacável... E, no fim das contas, assassino? Essas questões perturbadoras, para as quais não existe resposta óbvia, são exploradas por dois bons filmes atuais: o australiano Nitram, de Justin Kurzel, e o estadunidense Mass, longa de estreia de Fran Kranz. 

Com roteiro de Shaun Grant, Nitram é uma cinebiografia de Martin Bryant (Nitram é Martin ao contrário), o atirador responsável pela morte de 35 pessoas no Massacre de Port Arthur, ocorrido em abril de 1996 na Tasmânia. O filme percorre sua juventude, enfatizando o relacionamento com seus pais (interpretados pelos veteranos Judy Davis e Anthony LaPaglia) e com a mulher rica com quem ele acaba se envolvendo (Essie Davis, de O Babadook). O texano Caleb Landry Jones, que passou meses treinando o sotaque australiano, foi merecidamente premiado no Festival de Cannes de 2021 por sua atuação como Nitram. 

Mass – com o duplo sentido de “missa” e “massa”, em referência ao assassinato em massa de que fala a história – desenrola-se como uma peça de teatro filmada, passando-se quase inteiramente entre quatro paredes. Conversam na sala fechada dois casais: pais inconformados (Martha Plimpton e Jason Isaacs) e pais impotentes (Ann Dowd, sempre ótima, e Reed Birney). Aos poucos, entendemos o que houve de trágico entre seus filhos adolescentes.

Ambos os filmes dialogam com outras obras que tentaram compreender o que leva jovens de classe média, aparentemente bem cuidados, a se tornarem assassinos em massa, como Elefante (2003), de Gus Van Sant, e Precisamos Falar Sobre o Kevin (2011), de Lynne Ramsay, baseado no livro homônimo de Lionel Shriver. Assim como nesses outros casos, Nitram e Mass não caem em sensacionalismo nem em sentimentalismo barato. Sóbrios, bem escritos e bem editados, os longas possuem pouca (Nitram) ou nenhuma (Mass) violência gráfica, construindo a tensão por meio de diálogos afiados e, principalmente no caso de Nitram, com uma iluminação esmaecida e cortes estratégicos que colaboram para o sentimento de “revisão de um passado que não se pode alterar”. 

Nos dois, as interpretações são impecáveis. Grande parte do nosso envolvimento em uma temática tão desagradável dá-se graças ao comprometimento dos atores. A interpretação multicamadas de Caleb Landry Jones permite-nos entrever no jovem Nitram tudo que pode explicar seu potencial para a violência: a inabilidade de fazer amigos e de entender o que se passa ao seu redor, a dor das rejeições constantes, o desejo vão de surfar... Enfim, exclusão e solidão agudas. 

Mass é ainda mais dependente da capacidade de convencimento dos quatro protagonistas: precisamos acreditar que aqueles são pais arrasados por uma tragédia insuperável, mas que ainda assim tentam prosseguir com suas vidas – e de fato acreditamos piamente, tal é a destreza emocional dos dois pares de atores. 

Muito se poderia debater com base tanto nessas obras ficcionais quanto nos casos reais de ataques em massa. O acesso a armas (o Massacre de Port Arthur, inclusive, levou a uma mudança na lei de porte de armas na Austrália); o papel da escola nos casos de bullying; a influência da mídia; o diagnóstico precoce de possíveis transtornos; a responsabilidade dos pais, entre tantos possíveis aspectos. É por isso que, enquanto acompanhamos as cenas, vamos levantando hipóteses, tentando até mesmo diagnosticar os envolvidos, mas os filmes se saem bem ao mostrar que fatores variados e imprevisíveis podem colaborar para um desfecho violento. 

Em Nitram e Mass, não há violência doméstica explícita que explique o impulso assassino dos jovens. Em determinado momento de Mass, pais angustiados trocam farpas do tipo “talvez houvesse algo de errado no cérebro dele, talvez ele tenha nascido assim” e “como foi que vocês não perceberam nada”. Esses são questionamentos esperados diante do incompreensível. Se uma criança é amada e bem tratada, como pode se tornar violenta? Talvez o amor não seja suficiente, uma possibilidade muito incômoda examinada pelas duas obras. 

Fora da ficção, também há pouca certeza nesse sentido: o embate natureza x criação (nasceu assim ou foi criado assim?) é complexo e, por enquanto, insolúvel. Com base em pesquisas desenvolvidas ao longo de décadas, sabe-se hoje qual é o perfil mais comum do atirador em massa, perfil esse representado tanto em Nitram quanto em Mass: homem, em grave crise emocional, com relações conflituosas dentro e fora de casa (segundo o levantamento sobre mass shooting de “The Violence Project”). Atualmente, a busca pela fama também parece desempenhar um papel relevante, o que complica ainda mais a equação. 

Mas por que assistimos a ficções desse tipo, sabendo que coisas idênticas de fato acontecem? Na crítica elogiosa a Nitram publicada em The Guardian, Luke Buckmaster lembra que, no dia em que o cinema não quiser mais chocar nem provocar, é melhor que os artistas levantem acampamento e escolham outra coisa para fazer. Isso porque, tradicionalmente, confrontamos nossos demônios por meio de narrativas; é compreensível que filmes como Nitram e Mass, angustiantes que são, nos ajudem a metabolizar um dado de realidade.

Nitram e Mass têm feito uma boa carreira na temporada de premiações: Nitram ganhou oito prêmios, incluindo o de melhor filme, da Academia Australiana de Cinema e Televisão; Ann Dowd está indicada ao Bafta de melhor atriz coadjuvante por Mass.


Cynthia Beatrice Costa é tradutora e professora do curso de Tradução da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), com pesquisa na área de tradução literária e adaptação cinematográfica. Nascida em Osasco (SP), formou-se em Jornalismo pela Cásper Líbero e trabalhou por mais de uma década como repórter de revistas e editora de livros, enquanto foi se especializando ao longo das pós-graduações. Leitora voraz e cinéfila de carteirinha. Livro e filme preferidos: Dom Casmurro e Janela Indiscreta.