Fator tempo
Quisera
reter do tempoao menos uma vaga ideia,
que no entanto me escapa
no instante mesmo em que
escrevo.
Detenho somente a certeza
de que o próprio tempo
se anula em seu transcurso,
como pegadas sobre a neve
com o sol forte em cima.
E se somos nós que estamos
pisando esta neve não nos
resta do tempo transcorrido,
senão a branca lembrança do
gelo que se imprime sobre
os nossos sapatos plásticos
e derrete.
O peixe e o homem
Um peixe
observa-me
através da
transparência
do aquário.
Eu, caído,
não enxergo
o brilho azul
do peixe
através
do aquário.
Um peixe
nadando
no aquário
analisa-me
debatendo
no chão
de assoalho.
Eu, deitado,
contemplo
uma trinca
na laje
do quarto
fechado.
Um peixe
espera
no aquário
que eu me levante
para alimentá-lo.
Eu, aturdido,
leio a legenda
de plástico
colada na
superfície
do aquário.
Um peixe
de aquário
compara
sua liberdade
de movimentos
com o meu
naufrágio.
O peixe
dentro do
seu aquário
nada, canta,
pula e joga bola.
Eu, um homem
fora do seu espaço,
olho para a vida
e a água gira forte
no fundo
de um poço tapado.
E pensar
que tudo começou
com uma banheira
cheia de água suja.
Os dois poemas acima são do livro A Sentinela em Fuga e Outras Ausências (Multifoco, 2011, esgotado).
Flashes de um cotidiano
Não como faz o pedestre
no verde do trânsito, pois
há uma possibilidade
de atravessar ileso.
Detenho-me apenas e por fazê-lo
ela se esvai em minha dúvida.
Detenho-me diante de teus olhos.
Não como faz o oculista
na miopia do paciente, pois
há uma possibilidade
de receitar uns óculos.
Detenho-me somente pelo enigma
e assim perco-te de vista.
Detenho-me diante da morte.
Não como faz o religioso
na partida do irmão, pois
há uma expectativa
de vida eterna.
Detenho-me incrédulo
e por não acreditar
já não temo o vazio.
Detenho-me diante do amor.
Não como faz o homossexual
no convívio social, pois
há uma chance
de vencer os preconceitos.
Detenho-me para deter o medo
e na hesitação amanheço.
Detenho-me diante de mim.
Não como faz o homem
na transparência do espelho, pois
há uma possibilidade
de não se enxergar a si próprio.
Detenho-me sem fugir de mim
e por não saber forjar-me
todo esforço é inútil.
Detenho-me diante do tempo.
Não como faz o adolescente
na festa de debutantes, pois
há uma esperança
de vencer no tempo.
Detenho-me sem alegorias
e por não tê-las
o presente é trágico.
Detenho-me diante do silêncio.
Assim como fazem os animais mesquinhos,
que com seus ruídos soturnos
não quebram o silêncio da noite.
Fazem parte dele, ou antes, o completam.
Do livro O
acaso das manhãs (Edicon, 1986). Pedido de exemplares pelo e-mail
coisasprobule@gmail.com. Preço: R$ 20,00 + R$ 10,00 frete = R$ 30,00.